O Parto Que Mudou Tudo: Entre a Vida e a Família

— Não podes desistir agora, Inês! — gritava a minha mãe, agarrando-me pela mão com uma força que eu nunca lhe conhecera. O suor escorria-me pela testa, misturando-se com as lágrimas que eu já não conseguia conter. O quarto do hospital parecia encolher à minha volta, as luzes brancas tornando tudo ainda mais irreal.

Oiço ao longe o meu marido, Miguel, a discutir com a médica. — Ela está a sofrer! Façam alguma coisa! — A voz dele tremia, entre a raiva e o desespero. Eu queria gritar também, mas só conseguia gemer de dor. O relógio na parede marcava 3h17 da manhã. Já estava ali há mais de dez horas.

Nunca imaginei que o nascimento da minha filha pudesse ser assim. Sempre ouvi dizer que era um momento mágico, mas para mim foi um pesadelo. Tudo começou quando rebentei as águas em casa, mais cedo do que o previsto. Miguel estava a trabalhar no turno da noite na fábrica de cerâmica em Aveiro. Liguei-lhe, mas só atendeu à terceira tentativa.

— Inês? O que se passa?
— Rebentei as águas… Acho que está a começar.
— Vou já para casa! — respondeu ele, mas percebi pelo tom que estava assustado.

A minha mãe chegou primeiro. Levou-me ao hospital no carro velho do meu pai, que já não estava entre nós há dois anos. O cheiro a tabaco impregnado nos bancos misturava-se com o cheiro do meu medo. A viagem pareceu interminável.

No hospital, tudo era confuso. Enfermeiras apressadas, médicos de cara fechada, gritos de outras mulheres em trabalho de parto. Senti-me pequena, perdida. Quando finalmente me deitaram na maca, comecei a perceber que algo não estava bem.

— O bebé está em posição pélvica — disse a médica, olhando para mim com uma expressão grave. — Vai ser complicado.

Miguel chegou pouco depois, ofegante, com o uniforme ainda sujo de pó branco da fábrica. Agarrou-me na mão e tentou sorrir, mas os olhos dele estavam vermelhos.

As horas passaram devagar. As dores aumentavam e eu sentia-me cada vez mais fraca. A minha mãe rezava baixinho ao meu lado. Miguel discutia com os médicos sobre a possibilidade de uma cesariana.

— Não é seguro neste momento — respondeu a médica, impaciente. — Temos de esperar.

Senti raiva. Raiva por não ter controlo sobre o meu próprio corpo, por depender de decisões alheias. Lembrei-me do meu pai, que sempre dizia: “Na vida, filha, temos de ser fortes porque ninguém vai lutar por nós.” Mas ali, naquela cama fria, eu só queria alguém que lutasse por mim.

De repente, tudo ficou mais intenso. Senti uma dor aguda e comecei a gritar. As enfermeiras correram para o quarto. O monitor apitou alto e vi o pânico nos olhos da médica.

— Temos de agir agora! — gritou ela.

Fui levada para o bloco operatório quase sem perceber. Miguel ficou para trás, impedido de entrar. Lembro-me do olhar dele, perdido e impotente.

Acordei horas depois, com uma sensação estranha no corpo. Olhei à volta e vi a minha mãe sentada ao meu lado, olhos inchados de tanto chorar.

— Onde está a bebé? — perguntei com voz fraca.

Ela hesitou antes de responder:
— Está na incubadora… Houve complicações, Inês. Mas vai ficar tudo bem.

O vazio que senti naquele momento foi maior do que qualquer dor física. Queria levantar-me e correr até à minha filha, mas não conseguia mexer as pernas. Senti-me prisioneira do meu próprio corpo.

Os dias seguintes foram um tormento. A bebé lutava pela vida na neonatologia; eu lutava contra a culpa e o medo. Miguel quase não falava comigo. Passava horas sentado ao lado da incubadora, olhando para aquele ser tão pequeno e frágil.

Uma noite, ouvi-o ao telefone com a mãe dele:
— Não sei se vou conseguir perdoar a Inês… Se ela tivesse ido ao hospital mais cedo… — A voz dele era um sussurro carregado de mágoa.

Senti uma facada no peito. Será que ele tinha razão? Será que fui eu a culpada por tudo isto?

A minha mãe tentava animar-me:
— Filha, tu fizeste tudo o que podias. Não te culpes.
Mas as palavras dela soavam vazias.

Os médicos diziam-nos pouco. Cada dia era uma montanha-russa: ora havia esperança, ora voltávamos ao desespero. Vi casais felizes saírem do hospital com os seus bebés nos braços enquanto eu ficava ali, presa entre quatro paredes e pensamentos negros.

Uma tarde, Miguel entrou no quarto com os olhos vermelhos:
— A Leonor teve uma paragem respiratória… Estão a tentar reanimá-la.

O chão fugiu-me dos pés. Gritei, chorei, rezei como nunca tinha rezado antes. A minha mãe abraçou-me com força.

Minutos depois — ou talvez tenham sido horas — uma enfermeira entrou:
— Conseguiram estabilizá-la. Mas ainda não sabemos se vai ficar com sequelas…

A partir desse momento, tudo mudou entre mim e Miguel. Ele afastou-se cada vez mais. Começou a dormir no sofá do hospital ou em casa da mãe dele. Eu sentia-me sozinha como nunca antes.

Quando finalmente pude pegar na Leonor ao colo pela primeira vez, chorei tanto que pensei que nunca mais ia parar. Ela era tão pequena… Tão frágil… Mas estava viva.

Voltámos para casa semanas depois, mas nada voltou ao normal. Miguel evitava olhar para mim; as discussões tornaram-se frequentes.

— Achas que isto é fácil para mim? — gritava ele numa noite em que Leonor chorava sem parar.
— Achas que é fácil para mim? Eu quase morri! — respondi-lhe entre lágrimas.
— Pois… Talvez fosse melhor se tivesses morrido tu em vez dela sofrer assim!

As palavras dele cortaram-me como facas. Fugi para o quarto com Leonor nos braços e chorei até adormecer.

Os meses passaram e as feridas não saravam. Leonor precisava de fisioterapia; eu precisava de terapia da alma. A minha mãe era o meu único apoio — cozinhava para nós, ajudava-me com a bebé e tentava manter alguma paz em casa.

Um dia encontrei Miguel a fazer as malas.
— Vais embora?
Ele olhou para mim sem emoção:
— Não aguento mais isto. Preciso de tempo para pensar.

Fiquei sozinha com Leonor e com os meus fantasmas. Tive de aprender a ser mãe e pai ao mesmo tempo; tive de aprender a perdoar-me pelos erros que talvez nem fossem meus.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que entrou naquele hospital naquela noite fatídica. Aprendi que a vida pode mudar num segundo; aprendi que nem sempre temos controlo sobre o nosso destino; aprendi que às vezes sobreviver já é uma vitória.

Leonor tem agora três anos e é uma guerreira como eu nunca fui. Miguel voltou passado um ano — mudado, arrependido — mas já era tarde demais para nós como casal. Somos pais presentes para ela; amigos distantes um do outro.

Às vezes pergunto-me: será que podia ter feito algo diferente? Será que algum dia vou deixar de sentir esta culpa? E vocês… já sentiram que a vida vos fugiu das mãos num instante?