O Parto Que Mudou Tudo: Entre a Vida e a Família

— Não podes continuar assim, Inês! — gritou a minha mãe do outro lado da porta, enquanto eu me encolhia no chão frio da casa de banho, com as mãos a tremer sobre a barriga inchada. — Tens de ir ao hospital, já! — insistia ela, a voz carregada de medo e frustração.

Eu queria responder, mas as palavras não saíam. Só conseguia pensar no sangue que manchava as minhas pernas e no olhar vazio do Rui, o meu marido, parado no corredor, sem saber o que fazer. O relógio marcava 5h17 da manhã de uma terça-feira qualquer em Lisboa, mas para mim o tempo tinha parado.

— Inês, por favor! — suplicou a minha mãe, batendo à porta. — A tua filha precisa de ti!

Foi esse grito que me fez levantar. O medo era maior do que a dor. Saí cambaleante, agarrada à parede, e vi o Rui finalmente acordar do choque. Pegou nas chaves do carro com mãos trémulas e ajudou-me a descer as escadas do prédio antigo, enquanto a minha mãe ligava para o 112.

No carro, o silêncio era cortante. Só se ouvia a minha respiração ofegante e os soluços contidos do Rui. Eu sentia-me sozinha, mesmo rodeada de quem mais amava. A cada buraco na estrada, sentia uma pontada aguda e pensava: “Será que vou perder a minha filha? Será que vou morrer?” Nunca me senti tão frágil.

Chegámos ao Hospital de Santa Maria e fomos recebidos por uma enfermeira apressada. — Quantas semanas tem? — perguntou ela, sem sequer olhar para mim.

— Trinta e quatro — respondi com voz rouca.

— Hemorragia? — assentiu ela, já a empurrar-me numa cadeira de rodas para dentro do elevador.

O Rui ficou para trás, barrado pelas portas automáticas. Vi-o levantar as mãos em desespero, mas ninguém lhe explicou nada. Senti-me ainda mais isolada.

No bloco de partos, tudo aconteceu depressa demais. Médicos entravam e saíam, falavam entre si em termos técnicos que eu não compreendia. Uma médica jovem olhou-me nos olhos e disse:

— Inês, vamos ter de fazer uma cesariana de emergência. A sua filha está em sofrimento.

O mundo desabou. Não era assim que eu tinha imaginado o nascimento da minha filha. Tinha sonhado com um parto natural, com o Rui ao meu lado, com lágrimas de alegria e não de pânico.

— Quero o meu marido! — supliquei.

— Não é possível agora — respondeu a médica, já a preparar-me para a anestesia.

Senti uma mão fria na minha testa e depois tudo ficou escuro.

Acordei horas depois numa sala branca e silenciosa. O primeiro som que ouvi foi um choro fraco. O coração disparou: “A minha filha!” Mas ninguém me trouxe notícias. Fiquei ali sozinha, presa entre o sono e a dor, até que finalmente uma enfermeira entrou.

— A sua filha está nos cuidados intensivos neonatais — disse ela, sem rodeios. — Nasceu muito fraquinha, mas está a lutar.

As lágrimas correram-me pelo rosto sem controlo. Queria vê-la, tocá-la, dizer-lhe que estava ali. Mas disseram-me que tinha de esperar.

O Rui apareceu ao fim da tarde, com os olhos vermelhos e as mãos vazias. Sentou-se ao meu lado sem dizer nada. Ficámos assim durante minutos eternos até ele finalmente sussurrar:

— A tua mãe está furiosa comigo. Diz que devia ter chamado logo a ambulância.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era hora de culpas, mas tudo parecia desmoronar-se à nossa volta.

Os dias seguintes foram um tormento. Eu presa à cama do hospital, cheia de dores e dúvidas; a minha filha presa a máquinas; o Rui dividido entre nós e o trabalho; a minha mãe a atirar culpas para todos os lados.

— Se tivesses ido ao médico quando eu disse… — repetia ela sempre que entrava no quarto.

— Não é altura para isso! — gritava o Rui.

Eu só queria paz. Só queria segurar a minha filha nos braços e sentir que tudo ia ficar bem.

Na terceira noite, acordei com um pesadelo: via-me sozinha num corredor escuro, a chamar pela minha filha sem resposta. Acordei a chorar baixinho para não acordar as outras mães do quarto partilhado.

No dia seguinte, finalmente deixaram-me ver a minha filha. Entrei na UCI com o coração nas mãos. Ela era tão pequena… Tão frágil… Tinha tubos por todo o lado e os olhos fechados como se ainda não quisesse enfrentar o mundo.

— Ela vai sobreviver? — perguntei à médica.

— Está a lutar muito — respondeu ela. — Mas ainda é cedo para dizer.

Sentei-me ao lado da incubadora e comecei a falar-lhe baixinho:

— Olá, Leonor… A mamã está aqui… Não desistas…

Passei horas ali sentada todos os dias. O Rui vinha quando podia, mas estava cada vez mais distante. A pressão era demais para ele. Uma noite confessou-me:

— Não sei se consigo lidar com isto tudo… Sinto-me inútil…

Abracei-o como pude, mas sentia-o escapar-me por entre os dedos.

A minha mãe continuava a culpar-nos por tudo: por não termos ido mais cedo ao hospital, por não termos escolhido um privado, por não termos feito mais exames… Cada palavra dela era uma facada no peito.

Uma tarde ouvi-a discutir com o Rui no corredor:

— Se tu fosses homem de verdade, isto não tinha acontecido!

— E se tu fosses menos controladora, talvez a Inês estivesse menos ansiosa! — respondeu ele, já sem paciência.

Eu só queria desaparecer.

Os dias passaram-se assim: entre visitas à UCI, discussões familiares e noites sem dormir. Vi outras mães levarem os seus bebés para casa enquanto eu ficava ali presa à incerteza.

Finalmente, ao fim de três semanas, disseram-me que podia pegar na Leonor ao colo pela primeira vez. Chorei tanto que pensei que nunca mais ia parar. Senti o coração remendado por um fio ténue de esperança.

Quando finalmente voltámos para casa, nada era como antes. O Rui estava diferente; eu estava diferente; até a minha mãe parecia mais velha. A Leonor chorava muito e eu sentia-me incapaz de ser a mãe que ela merecia.

As discussões continuaram: sobre amamentação, sobre dinheiro (porque as contas do hospital privado tinham sido recusadas pelo seguro), sobre quem ficava acordado à noite…

Uma noite perdi o controlo:

— Basta! Não aguento mais! — gritei aos dois na cozinha enquanto segurava a Leonor ao colo.

O silêncio caiu como uma pedra pesada sobre nós. O Rui saiu de casa nessa noite e só voltou dois dias depois. A minha mãe chorou baixinho no quarto dela.

Foi preciso chegar ao limite para percebermos que precisávamos uns dos outros mais do que nunca. Procurámos ajuda: terapia familiar no centro de saúde do bairro; apoio psicológico para mim; grupos de mães no Facebook onde partilhei medos e encontrei consolo em desconhecidas que sabiam exatamente o que eu sentia.

Hoje olho para trás e vejo como aquele parto inesperado mudou tudo: destruiu certezas, revelou fragilidades mas também fortaleceu laços que eu julgava quebrados para sempre.

A Leonor tem agora dois anos e corre pela casa como se nunca tivesse estado entre a vida e a morte. O Rui voltou a sorrir; a minha mãe aprendeu a pedir desculpa (às vezes). Eu ainda acordo algumas noites com medo, mas abraço-a com força e agradeço por estarmos juntas.

Pergunto-me muitas vezes: teria sido diferente se tivéssemos feito outras escolhas? E vocês? Já sentiram esse peso das decisões impossíveis? Como se volta a confiar na vida depois de quase perdê-la?