O Dia em que Salvei o Meu Pai: Uma História de Coragem e Medo em Lisboa
— Pai? Estás bem? — perguntei, a voz a tremer, enquanto via o corpo do meu pai tombar no chão da cozinha, os olhos revirados e a mão a apertar o peito. O cheiro do café queimado misturava-se com o pânico que me subia à garganta. Nunca tinha visto o meu pai assim. Ele era o meu herói, o homem que nunca se magoava, que me ensinava a andar de bicicleta no Jardim da Estrela e me levava à bola ao domingo. Mas ali, caído no chão frio, parecia tão pequeno e indefeso.
O relógio da parede marcava 7h12. A minha mãe já tinha saído para o trabalho no hospital de Santa Maria. Eu estava sozinho com ele. Senti as pernas a tremer, mas forcei-me a aproximar-me. — Pai! — gritei mais alto, mas ele não respondia. Lembrei-me das histórias que a minha mãe contava sobre emergências e do número que ela me obrigou a decorar: 112.
Corri até ao telefone fixo, tropeçando na mochila da escola. Os dedos tremiam tanto que quase não consegui marcar os números. — Emergência, qual é a sua ocorrência? — ouvi uma voz calma do outro lado. — O meu pai caiu! Ele não responde! Acho que está a ter um ataque ao coração! — gritei, sentindo as lágrimas a escorrerem pela cara.
A senhora pediu-me para ter calma e perguntou-me o endereço. Disse-lhe tudo o que sabia, enquanto olhava para o meu pai imóvel. — Tens de ver se ele está a respirar — disse ela. Aproximei-me dele, encostei o ouvido ao peito dele como vi na televisão. O coração batia fraco, mas batia. — Está… está a respirar, mas muito devagar! — respondi.
— Ouve com atenção: vais ter de ficar com ele até chegarmos aí. Se ele parar de respirar, tens de fazer compressões no peito dele. Sabes como se faz? — perguntou ela. Lembrei-me das vezes em que a minha mãe praticou comigo em bonecos de peluche. — Acho que sim… — respondi, engolindo em seco.
Os minutos pareciam horas. Oiço as sirenes ao longe e sinto uma esperança tímida a nascer dentro de mim. Mas o meu pai começa a ficar mais pálido. — Pai! Aguenta! Por favor! — imploro, segurando-lhe na mão grande e áspera.
De repente, ele estremece e deixa de respirar. O pânico toma conta de mim, mas lembro-me das instruções da senhora do 112. Coloco as mãos no centro do peito dele e começo a fazer força, contando alto: — Um, dois, três… — As lágrimas caem sem parar, mas não posso desistir. — Por favor, pai! Não me deixes!
A porta arromba-se com um estrondo e dois bombeiros entram na cozinha. Um deles afasta-me com cuidado: — Fizeste muito bem, campeão! Agora deixa connosco! — diz ele, enquanto outro começa a usar um desfibrilhador.
Fico encostado à parede, as mãos sujas e o coração aos saltos. Sinto-me pequeno e inútil, mas também estranho corajoso. Vejo os bombeiros a trabalhar no meu pai, ouço palavras técnicas que não entendo: “fibrilação”, “adrenalina”, “choque”.
O tempo passa devagar até que finalmente um deles sorri para mim: — Ele voltou! O teu pai vai ficar bem! — diz, e eu desabo num choro aliviado.
Quando a minha mãe chega ao hospital onde trabalha e me vê sentado na sala de espera com os olhos inchados, corre até mim e abraça-me com força. — O que aconteceu? — pergunta ela, desesperada.
— O pai… ele caiu… eu liguei para o 112… fiz tudo como tu ensinaste… — digo entre soluços.
Ela olha para mim com um orgulho misturado com tristeza. — Foste muito corajoso, filho. Salvaste o teu pai.
Os dias seguintes são um turbilhão de emoções. O meu pai fica internado na UCI durante uma semana. Todos os dias vou visitá-lo depois da escola. Ele sorri para mim do outro lado do vidro e faz um gesto de força com o punho fechado.
A família inteira vem visitar-nos: os meus avós de Setúbal, os tios do Porto, até o primo Rui que nunca gostou muito de mim aparece com um saco de gomas. Todos falam sobre como fui um herói, mas eu só queria que tudo voltasse ao normal.
Na escola, os colegas olham para mim de forma diferente. A professora Ana pede-me para contar à turma o que aconteceu. Sinto vergonha e orgulho ao mesmo tempo enquanto conto tudo: o medo, as lágrimas, as compressões no peito do meu pai.
Mas nem tudo são aplausos. O meu amigo Miguel começa a afastar-se de mim. Ouço-o dizer aos outros: — Agora ele pensa que é melhor do que nós só porque salvou o pai… — Isso dói mais do que qualquer outra coisa.
Em casa, as coisas mudam também. A minha mãe está sempre preocupada com o meu pai: controla-lhe a comida, obriga-o a caminhar todos os dias no parque Eduardo VII e discute com ele quando ele tenta comer chouriço ao jantar.
— Não percebes que quase morreste? — grita ela uma noite.
— Deixa-me viver um bocadinho! Já não posso nem comer o que gosto? — responde ele, frustrado.
Eu fico calado à mesa, a olhar para o prato de sopa fria. Sinto-me culpado por tudo isto estar a acontecer. Se não tivesse salvado o meu pai… será que era melhor assim? Será que agora somos mais felizes?
Uma noite ouço os meus pais a discutir no quarto:
— Ele é só uma criança! Não devia ter passado por isto! — diz a minha mãe.
— Mas passou… E foi graças a ele que estou aqui! — responde o meu pai.
No dia em que o meu pai volta para casa, há uma festa pequena só para nós três. Ele abraça-me com força e sussurra ao ouvido:
— Obrigado, filho. Salvaste-me a vida.
Sinto um nó na garganta e finalmente deixo sair tudo aquilo que guardei durante semanas:
— Tive tanto medo… Achei mesmo que te ia perder…
Ele limpa-me as lágrimas e diz:
— Eu também tive medo. Mas agora estamos juntos.
Hoje olho para trás e penso em tudo o que aconteceu naquele dia cinzento em Lisboa. Será que alguma vez vou conseguir ser apenas uma criança outra vez? Ou será que este momento me mudou para sempre? E vocês… já sentiram que tiveram de crescer antes do tempo?