O dia em que o meu filho me expulsou do meu próprio lar: a história de Maria de Coimbra
— Vais dormir na cozinha, mãe. Não há espaço para todos — disse o Rui, sem sequer me olhar nos olhos, enquanto arrastava as malas da Sofia para dentro do quarto que sempre foi meu.
Por um momento, pensei que tinha ouvido mal. Oiço mal, é verdade, mas não tanto. Oiço mal porque a idade não perdoa, mas nunca pensei que o meu próprio filho me falasse assim. Senti o coração apertar-se no peito, como se alguém me tivesse dado um murro. Olhei para ele, à espera de um sorriso, de um gesto que desmentisse aquelas palavras. Mas ele estava sério. A Sofia, a minha nora, nem sequer me cumprimentou; passou por mim com o bebé ao colo, como se eu fosse invisível.
A minha casa sempre foi pequena, mas era o meu refúgio. Vivi ali com o António durante quarenta anos. Foi ali que os meus filhos cresceram, que fizemos festas de aniversário, que chorei a morte do meu marido. Depois que ele partiu, fiquei sozinha, mas nunca me senti só. Tinha as minhas plantas na varanda, os vizinhos do prédio e as visitas do Rui ao domingo. Pelo menos era assim até há uns meses.
Tudo mudou quando o Rui perdeu o emprego em Lisboa. Ligou-me numa noite de chuva: — Mãe, posso ir aí uns tempos? Eu e a Sofia estamos com dificuldades. — Claro que sim, filho. A casa é tua — respondi sem hesitar. Era o mínimo que podia fazer por ele.
No início foi tudo suportável. Eles ficavam no quarto do Rui e eu no meu. O bebé chorava muito à noite, mas eu compreendia. A Sofia era distante, mas eu tentava aproximar-me: fazia-lhe chá, perguntava se precisava de ajuda com o pequeno Miguel. Ela respondia sempre com monossílabos.
Com o passar das semanas, começaram as discussões baixinho no corredor. O Rui reclamava da falta de espaço, da minha televisão alta, das minhas sopas “com cheiro estranho”. Um dia ouvi-o dizer à Sofia: — Isto não é vida para ninguém. Temos de arranjar uma solução.
A solução veio mais depressa do que eu esperava. Uma tarde, quando voltei do supermercado, encontrei as minhas coisas empilhadas num canto da sala. O Rui estava sentado à mesa da cozinha com papéis na mão.
— Mãe, precisamos de falar — disse ele, sem levantar os olhos dos papéis.
— O que se passa?
— Eu e a Sofia precisamos do teu quarto para o Miguel. Tu podes ficar na cozinha por uns tempos. É só até arranjarmos casa.
— Na cozinha? — perguntei, incrédula.
— Sim… Não temos alternativa.
Senti-me humilhada. A minha própria casa já não era minha. Fui para a varanda chorar em silêncio. Lembrei-me do António e desejei que ele estivesse ali para me defender.
Naquela noite não dormi. Sentei-me à mesa da cozinha e olhei para as paredes amarelas, cheias de manchas de humidade. Oiço o choro do Miguel no quarto ao lado e penso: “Como é possível? O Rui era tão carinhoso em pequeno…”
No dia seguinte tentei falar com ele:
— Rui, isto não está certo… Eu sou tua mãe! Sempre fiz tudo por ti.
Ele suspirou:
— Mãe, tu sabes que é temporário. Preciso de pensar na minha família agora.
— E eu? Não sou família?
Ele não respondeu.
Os dias passaram devagar. A Sofia evitava-me ainda mais. Um dia ouvi-a ao telefone com a mãe dela:
— Isto é insuportável… A velha está sempre por aqui… Não temos privacidade nenhuma.
Senti-me um estorvo na minha própria casa.
Comecei a sair mais vezes só para não estar ali. Ia ao jardim público sentar-me no banco onde costumava ir com o António. Uma tarde encontrei a Dona Emília, vizinha do terceiro andar.
— Então Maria, está tudo bem? Tem andado tão calada…
Desabei em lágrimas e contei-lhe tudo. Ela ficou chocada:
— Mas isso é um disparate! A casa é sua! Eles não têm direito nenhum…
As palavras dela ecoaram na minha cabeça durante dias. Comecei a pensar: será que estou a ser ingénua? Sempre pus os meus filhos à frente de tudo… E agora?
Nessa noite decidi falar com a minha filha mais velha, a Ana. Liguei-lhe com as mãos a tremer:
— Ana… preciso de falar contigo.
Ela veio logo no dia seguinte. Quando lhe contei tudo, ficou furiosa:
— O Rui perdeu completamente o juízo! Mãe, tu não tens de aceitar isto!
Discutiu com o irmão na sala enquanto eu ouvia tudo da cozinha:
— Como é possível tratares assim a mãe? Ela sempre te ajudou!
O Rui gritou:
— Não percebes nada! Tu tens a tua vida feita!
A Ana saiu batendo com a porta e abraçou-me:
— Não deixes que te tratem assim.
Mas como? Era o meu filho… O meu coração estava dividido entre o amor de mãe e a dor da traição.
Os dias tornaram-se insuportáveis. Comecei a sentir dores no peito e fui ao centro de saúde. A médica olhou-me nos olhos:
— Dona Maria, tem de pensar em si. O stress faz-lhe mal ao coração.
Voltei para casa decidida a mudar alguma coisa. Fui buscar os papéis do apartamento: estava tudo em meu nome! Sentei-me à mesa com o Rui:
— Rui, esta casa é minha! Não vou sair da minha cama nem dormir na cozinha! Se não estão bem aqui, procurem outra solução.
Ele ficou calado durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu sem dizer nada.
Nessa noite dormi no meu quarto pela primeira vez em semanas. Senti-me aliviada mas também triste: nunca imaginei ter de lutar assim contra um filho.
Passaram-se dias até que o Rui e a Sofia anunciaram que iam procurar um apartamento para arrendar. Quando finalmente saíram, fiquei sozinha na casa vazia — mas pela primeira vez em muito tempo senti paz.
Agora passo os dias a cuidar das minhas plantas e a conversar com os vizinhos no jardim. A Ana visita-me mais vezes e até me inscrevi numa aula de pintura para seniores.
Às vezes olho para as fotografias antigas do Rui em criança e pergunto-me: onde foi que errei? Será que amar demais pode ser um erro? E vocês — já sentiram que deram tudo por alguém e mesmo assim foram postos de lado?