O Dia em Que Minha Sogra Decidiu Viver Para Si Mesma

— Dona Linda, a senhora não pode estar a falar a sério! — A voz de Miguel ecoava pelo telefone, carregada de incredulidade e um certo desdém. — Remarcar o jantar de domingo para sair com um homem? E quem é que vai cuidar da casa? Da Emília?

Por um instante, fiquei sem palavras. O relógio marcava 18h12 e a chuva batia forte na janela do meu pequeno apartamento em Almada. Olhei para o espelho da sala e vi uma mulher de cabelo grisalho, olhos cansados, mas ainda vivos. Aos 50 anos, depois de uma vida inteira dedicada à família, será que não tinha direito a um pouco de felicidade?

— Miguel, a Emília tem 25 anos. Já é adulta. E a casa… bem, a casa pode esperar um pouco por mim. — Tentei manter a voz firme, mas sentia o coração apertado.

Do outro lado da linha, ouvi um suspiro impaciente.

— A senhora sabe que não é só isso. A Emília precisa da mãe. Eu preciso da senhora aqui. Não pode simplesmente… — Ele hesitou, procurando as palavras certas — …abandonar tudo agora.

Abandonar? Era isso que pensavam de mim? Que eu era apenas uma peça funcional nesta engrenagem familiar? Uma empregada invisível, sempre pronta a servir?

Desliguei o telefone sem responder. Sentei-me no sofá e deixei as lágrimas correrem. Não era só Miguel. Era toda a família: minha irmã Teresa, sempre pronta a criticar; minha mãe, que nunca entendeu porque me separei do António; até mesmo a Emília, que me tratava como se eu fosse eterna, como se eu não tivesse sonhos próprios.

Lembrei-me do dia em que conheci António, há quase trinta anos, num baile popular em Setúbal. Ele era charmoso, divertido e prometeu-me o mundo. Mas o mundo dele era pequeno demais para mim. Depois do nascimento da Emília, tudo mudou: ele tornou-se ausente, frio, e eu fui-me apagando aos poucos.

Aos 40 anos, divorciei-me. Fiquei com a casa e com a filha. Trabalhei como auxiliar numa escola primária durante anos, sempre com um sorriso no rosto para as crianças dos outros. Em casa, era diferente: a rotina esmagava-me. Cozinhar, limpar, ouvir as queixas da Emília sobre o trabalho ou sobre o Miguel.

Foi só quando fiz 50 anos que me permiti sonhar outra vez. Conheci o Jorge num grupo de caminhadas na Serra da Arrábida. Ele era viúvo, simpático e fazia-me rir como há muito ninguém fazia. Começámos a sair às escondidas — não por vergonha, mas porque sabia que ninguém entenderia.

Naquela noite chuvosa, depois da chamada do Miguel, Emília entrou em casa.

— Mãe? Está tudo bem? — perguntou ao ver meus olhos vermelhos.

— Está tudo ótimo, filha. Só estou cansada.

Ela sentou-se ao meu lado e pegou na minha mão.

— O Miguel ligou-me. Disse que você está diferente… distante.

Respirei fundo antes de responder:

— Emília, alguma vez pensaste no que eu quero para mim? Alguma vez te perguntaste se sou feliz?

Ela ficou em silêncio. Nunca tínhamos falado assim antes.

— Eu… achei que você estava bem assim. Sempre foi tão forte…

— Forte? — Ri amargamente. — Forte porque não tinha escolha! Porque ninguém nunca me perguntou se eu queria outra vida!

Ela baixou os olhos e murmurou:

— Desculpa, mãe.

Naquele momento percebi: eu precisava viver para mim. Pela primeira vez em décadas.

No domingo seguinte, vesti o meu melhor vestido azul e fui ao encontro do Jorge num café à beira-mar. Senti-me nervosa como uma adolescente. Conversámos durante horas sobre livros, viagens e sonhos adiados.

Quando voltei para casa, encontrei Miguel à porta do prédio.

— Dona Linda, precisamos conversar — disse ele com voz dura.

Subimos juntos no elevador. Ele olhou-me nos olhos:

— A senhora está a pôr tudo em risco por causa de um homem?

Senti uma raiva antiga crescer dentro de mim.

— Não é por causa de um homem! É por mim! Pela primeira vez na vida estou a pensar em mim!

Ele abanou a cabeça.

— E se a Emília precisar? E se eu precisar?

— Vocês vão aprender a viver sem depender tanto de mim. Eu não sou eterna.

Miguel saiu batendo a porta. Fiquei sozinha na sala escura, mas pela primeira vez senti-me livre.

Os dias seguintes foram difíceis. Teresa ligou-me furiosa:

— Tu enlouqueceste? Uma mulher da tua idade a namoriscar por aí? O que vão dizer as vizinhas?

Respondi calmamente:

— Que digam o que quiserem. Eu já perdi demasiado tempo a viver para os outros.

Aos poucos, Emília começou a perceber que eu não era só mãe dela — era uma mulher com desejos e sonhos próprios. Um dia chegou perto de mim e disse:

— Mãe… desculpa por nunca ter visto você de verdade.

Abraçámo-nos em silêncio.

Hoje, meses depois daquela chamada fatídica do Miguel, continuo com Jorge. Não é perfeito — nada é — mas sinto-me viva outra vez. A casa está menos arrumada, às vezes falta comida feita na hora certa… mas há mais risos e menos lágrimas.

Pergunto-me: quantas mulheres como eu existem por aí? Quantas ainda têm medo de viver para si mesmas? Será que algum dia vamos aprender a pôr-nos em primeiro lugar sem culpa?