O Aniversário Que Mudou Tudo

— Vais mesmo fazer isto agora? — ouvi a voz da minha mãe tremer, enquanto segurava o prato com o bolo de aniversário do meu pai. O cheiro a bacalhau com natas ainda pairava no ar da sala, misturado com o perfume barato da minha tia Lurdes e o fumo do cigarro esquecido do meu avô. Eu estava sentada no sofá, com as mãos suadas e o coração aos pulos, sem saber se devia olhar para o chão ou encarar o meu pai.

O meu pai, António, estava de pé junto à janela, com as mãos nos bolsos e os olhos fixos na rua escura. A festa tinha começado há menos de uma hora e já todos sentíamos que algo estava errado. Ele não sorria, não contava piadas como de costume. Quando finalmente falou, a voz saiu-lhe baixa mas firme:

— Não posso continuar a fingir. Vou sair de casa. Não é justo para ninguém.

A minha mãe deixou cair o prato. O bolo tombou no tapete novo que ela tinha comprado para a ocasião. O silêncio foi tão pesado que até o relógio da parede pareceu parar. O meu irmão mais novo, o Miguel, começou a chorar baixinho. Eu fiquei ali, paralisada, a tentar perceber se aquilo era um pesadelo ou se estava mesmo a acontecer.

— António, por favor… — a minha mãe aproximou-se dele, os olhos vermelhos de lágrimas — Espera pelo menos um ano. Dá-nos tempo. Dá-me tempo para tentar… para tentar salvar isto.

O meu pai não respondeu logo. Olhou para mim e depois para o Miguel. Vi nos olhos dele uma tristeza funda, mas também uma decisão tomada há muito tempo.

— Já esperei demasiado tempo, Maria. Não posso mais.

A minha tia Lurdes tentou intervir:

— Ó António, não faças isto aos miúdos! Pensa bem!

Mas ele já não ouvia ninguém. Pegou no casaco e saiu porta fora, deixando-nos ali, despedaçados.

Naquela noite não dormi. Ouvi a minha mãe chorar na cozinha até de madrugada. O Miguel veio deitar-se comigo e abraçou-me tão forte que quase não conseguia respirar. Senti-me perdida, zangada com o meu pai por nos abandonar assim, mas também com a minha mãe por não ter conseguido evitar aquilo.

Os dias seguintes foram um borrão de telefonemas de familiares, vizinhos curiosos e silêncios pesados à mesa. A minha mãe andava como um fantasma pela casa, a arrumar e desarrumar gavetas, como se procurasse uma resposta entre as meias do meu pai ou nas cartas antigas guardadas na cómoda.

Eu tentava manter-me ocupada com os estudos e os amigos, mas tudo parecia sem sentido. Na escola, a professora de Português perguntou-me se estava tudo bem e eu só consegui encolher os ombros. Os meus colegas cochichavam nos corredores:

— Ouviste? O pai da Inês foi-se embora…

A vergonha misturava-se com a raiva. Porque é que isto tinha de acontecer logo connosco? Porque é que o meu pai não podia ser como os outros pais que ficavam em casa, mesmo quando as coisas não corriam bem?

Um dia, ao fim de duas semanas sem notícias dele, recebi uma mensagem:

“Inês, podemos falar?”

O coração disparou-me no peito. Marquei encontro com ele num café perto da escola. Quando cheguei, vi-o sentado sozinho numa mesa ao canto, com ar cansado e mais velho do que nunca.

— Olá, filha — disse ele, tentando sorrir.

Sentei-me à frente dele sem saber o que dizer. Ele mexeu no café e olhou-me nos olhos:

— Sei que estás zangada comigo. E tens razão para estar. Mas eu já não era feliz há muito tempo…

— E nós? — interrompi-o — Nós não importávamos?

Ele baixou os olhos.

— Importam muito. Mas às vezes… às vezes temos de pensar em nós próprios também.

As palavras dele ficaram-me atravessadas na garganta durante dias. Como é que alguém podia escolher ser feliz sozinho em vez de tentar ser feliz connosco?

Em casa, a minha mãe tentava manter as aparências. Continuava a fazer o jantar para quatro pessoas e punha sempre o prato dele na mesa, como se ele fosse aparecer a qualquer momento. O Miguel perguntava todos os dias quando é que o pai voltava e eu já não sabia o que lhe responder.

As discussões começaram a aumentar entre mim e a minha mãe. Ela queria que eu ajudasse mais em casa, que fosse mais compreensiva com o Miguel, mas eu só queria fugir dali. Uma noite gritei-lhe:

— A culpa é tua! Se fosses diferente ele não tinha ido embora!

Ela ficou branca como a cal da parede e saiu da sala sem dizer uma palavra. Fiquei ali sozinha, cheia de culpa e vergonha por ter dito aquilo.

Os meses passaram devagar. O meu pai arranjou um apartamento pequeno em Benfica e começou uma nova vida. Levava-nos lá aos fins-de-semana alternados, mas tudo era estranho e desconfortável. Ele tentava compensar-nos com presentes e passeios ao Jardim Zoológico ou ao cinema, mas nada preenchia o vazio que sentíamos.

A minha mãe foi mudando também. Começou a sair mais com as amigas do trabalho e inscreveu-se num curso de costura na junta de freguesia. Um dia chegou a casa com um corte de cabelo novo e um vestido vermelho que nunca lhe tinha visto antes.

— O que achas? — perguntou-me com um sorriso tímido.

— Ficas bonita — respondi, surpreendida por ver aquele brilho nos olhos dela outra vez.

Comecei a perceber que talvez ela também estivesse a tentar encontrar-se depois de tantos anos a viver para os outros.

Eu própria comecei a mudar. Procurei refúgio nos livros e na escrita. Escrevia cartas ao meu pai que nunca cheguei a enviar e diários onde despejava toda a raiva e tristeza que sentia.

No final do ano letivo, fui chamada à direção da escola porque as minhas notas tinham descido drasticamente. A diretora sentou-se comigo e perguntou:

— Inês, queres falar sobre o que se passa?

Desatei a chorar ali mesmo, sem conseguir parar. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:

— Às vezes as famílias mudam e dói muito. Mas tu tens direito à tua dor. Só não deixes que ela te defina para sempre.

Essas palavras ficaram comigo durante muito tempo.

No verão seguinte, o meu pai apresentou-nos à nova namorada dele: uma mulher chamada Teresa, divorciada também e com uma filha da minha idade. Senti-me traída outra vez — como se ele tivesse trocado a nossa família por outra qualquer.

A Teresa era simpática e esforçava-se por ser gentil comigo e com o Miguel, mas eu mantinha-me fria e distante. Não queria aceitar aquela nova realidade.

Uma noite ouvi o meu pai discutir com ela na cozinha:

— Não sei o que fazer para a Inês gostar de ti…

Ela respondeu baixinho:

— Dá-lhe tempo. Ela precisa de tempo.

Foi aí que percebi: todos precisávamos de tempo para sarar as feridas.

No Natal desse ano fizemos duas ceias diferentes: uma em casa da minha mãe com os avós maternos e outra no apartamento do meu pai com a Teresa e a filha dela. Senti-me dividida entre dois mundos que já não encaixavam um no outro.

Com o tempo fui aceitando que talvez nunca voltássemos a ser uma família “normal” — seja lá o que isso for. Aprendi a valorizar os pequenos momentos: um passeio à beira-rio com a minha mãe, uma conversa sincera com o meu irmão antes de dormir ou um abraço inesperado do meu pai quando menos esperava.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquele aniversário fatídico. Ainda sinto saudades do tempo em que éramos todos juntos à mesa da sala, mas também reconheço que cada um de nós teve de encontrar o seu próprio caminho para ser feliz.

Às vezes pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoa tanto? Ou será que aprendemos apenas a viver com as cicatrizes? E vocês? Já passaram por algo assim? Como encontraram forças para seguir em frente?