No recreio da vergonha: A luta pela dignidade do meu filho
— Pai, não quero ir à escola. — A voz do Martim tremia, os olhos vermelhos de quem já chorou demais. Era uma manhã fria de novembro, e o cheiro do café misturava-se com a angústia que pairava na cozinha. Olhei para ele, tentando decifrar o que se passava por detrás daquele silêncio pesado.
— O que aconteceu, filho? — perguntei, tentando manter a calma, mas sentindo o coração a bater mais rápido.
Ele hesitou, baixou a cabeça e murmurou:
— Eles gozam comigo… chamam-me nomes… ontem atiraram-me a mochila para o lixo.
Senti um nó na garganta. O Martim sempre foi um miúdo sensível, mais reservado, mas nunca imaginei que pudesse estar a passar por isto. A minha mulher, Ana, entrou na cozinha nesse momento, apanhando-nos no meio daquela tensão. Olhou para mim, depois para o Martim, e percebeu logo que algo não estava bem.
— O que se passa? — perguntou ela, preocupada.
— O Martim está a ser vítima de bullying na escola — respondi, tentando não deixar transparecer a raiva que começava a crescer dentro de mim.
O silêncio instalou-se. Ana sentou-se ao lado do nosso filho e abraçou-o. Eu fiquei ali parado, impotente, a pensar em como é que isto tinha acontecido debaixo do nosso nariz.
Naquela noite, depois de deitarmos o Martim, eu e a Ana ficámos horas a conversar. Ela chorava baixinho, culpando-se por não ter percebido antes. Eu sentia-me dividido entre a vontade de ir à escola tirar satisfações com quem quer que fosse responsável por aquilo e o medo de piorar ainda mais a situação do Martim.
No dia seguinte, decidi ir falar com a professora titular. Entrei na escola com o coração apertado. A professora Teresa recebeu-me com um sorriso forçado.
— Sr. José, compreendo a sua preocupação, mas sabe como são as crianças… às vezes exageram um bocadinho…
— Exageram? — interrompi, sentindo o sangue ferver. — Acha normal atirarem a mochila do meu filho para o lixo? Chamarem-lhe nomes todos os dias?
Ela encolheu os ombros.
— Infelizmente, não podemos controlar tudo. Faz parte do crescimento.
Saí dali ainda mais revoltado. Como é possível tanta indiferença? Liguei à Ana e contei-lhe tudo. Decidimos marcar uma reunião com a direção da escola.
Na reunião, estavam presentes o diretor, a professora Teresa e uma psicóloga escolar. Falei de tudo: dos insultos, das agressões, da indiferença dos professores. O diretor ouviu-me com ar cansado e respondeu:
— Sr. José, temos muitos casos assim. Fazemos o possível, mas os recursos são poucos…
— E o meu filho? — perguntei, quase a gritar. — O que vai ser feito pelo meu filho?
A psicóloga sugeriu sessões de acompanhamento para o Martim. Mas eu queria mais. Queria justiça. Queria que os agressores fossem responsabilizados.
Os dias passaram e nada mudou. O Martim continuava triste, fechado no quarto, sem vontade de sair ou brincar. Eu e a Ana começámos a discutir cada vez mais. Ela queria mudar o Martim de escola; eu achava que devíamos lutar ali mesmo.
Uma noite, ouvi o Martim a chorar no quarto. Entrei devagarinho e sentei-me ao lado dele.
— Filho, sabes que podes contar comigo para tudo, não sabes?
Ele assentiu com a cabeça.
— Porque é que eles me odeiam tanto? — perguntou ele, num sussurro.
Senti-me esmagado por aquela pergunta. Como explicar-lhe que há pessoas más no mundo? Que nem sempre somos protegidos?
No dia seguinte, decidi ir falar diretamente com os pais dos miúdos que faziam bullying ao Martim. Esperei à porta da escola e abordei-os um por um. Alguns negaram tudo; outros disseram que eram apenas brincadeiras de crianças. Um deles até me ameaçou:
— Se continuar a meter-se com o meu filho, vai ver o que é bom!
Voltei para casa derrotado. Senti-me sozinho contra o mundo inteiro.
A Ana insistia em mudar o Martim de escola. Eu resistia. Achava que fugir não era solução. Mas cada dia via o meu filho mais apagado, mais distante.
Até que uma tarde recebi uma chamada da escola: o Martim tinha sido agredido no recreio e estava no hospital.
Corri para lá como um louco. Quando cheguei, vi-o deitado numa maca, com um olho negro e o lábio inchado. A Ana chorava ao lado dele.
Nesse momento percebi que tinha falhado como pai. Que toda a minha luta não tinha servido para nada se não conseguia proteger o meu filho.
Depois desse dia, mudámos mesmo o Martim de escola. Ele demorou meses a recuperar a confiança. Fez terapia, conheceu novos amigos e aos poucos voltou a sorrir.
Mas eu nunca mais fui o mesmo. Fiquei desconfiado do sistema, dos professores, até dos outros pais. Senti uma raiva surda contra uma sociedade que fecha os olhos à dor das crianças.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria lutado mais? Ou menos? Será que algum dia vamos conseguir proteger verdadeiramente os nossos filhos?
E vocês? O que fariam no meu lugar?