No Labirinto da Minha Própria Bondade: Quando Ajudar a Família se Torna um Peso
— Mãe, não percebes que precisamos mesmo deste apartamento? — A voz do Daniel ecoava pela sala, misturada com a ansiedade da Maria, que se mantinha calada, mas com os olhos cravados em mim, como se esperasse que eu cedesse de uma vez por todas.
Olhei para o chão, sentindo o peso dos anos e das decisões que me trouxeram até ali. O apartamento em Benfica era tudo o que eu tinha depois da morte do António. Era o meu refúgio, o lugar onde cada canto guardava memórias do nosso casamento, das festas de aniversário do Daniel, dos natais barulhentos com a família toda reunida. Mas agora, parecia que tudo isso era apenas um obstáculo para a felicidade do meu filho.
— Eu percebo, Daniel. Mas e eu? Para onde vou? — perguntei, tentando controlar a voz trémula.
A Maria finalmente falou:
— Dona Teresa, pode ficar connosco até encontrar alguma coisa. Não queremos deixá-la desamparada.
Mas eu sabia ler nas entrelinhas. O desconforto dela era evidente. Não queria a sogra a viver debaixo do mesmo teto. E eu, orgulhosa como sempre fui, não queria ser um estorvo.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, ouvindo os carros a passar lá fora e a pensar em como a vida me tinha levado até ali. Recordei-me da infância do Daniel: das noites em claro quando ele tinha febre, das vezes em que abdiquei de comprar roupa nova para mim para lhe pagar os livros da faculdade. Sempre pus o bem-estar dele à frente do meu.
No dia seguinte, assinei os papéis. Passei o apartamento para o nome dele. Eles agradeceram, mas senti que era mais alívio do que gratidão. Começaram logo a planear as mudanças: queriam pintar as paredes, trocar os móveis antigos por outros mais modernos. Cada decisão deles era como um prego no caixão das minhas memórias.
Fiquei ali durante duas semanas, enquanto procurava um quarto para arrendar. O Daniel estava sempre ocupado com o trabalho e a Maria evitava conversas longas comigo. Sentia-me uma intrusa na minha própria casa. Uma noite ouvi-os a discutir baixinho na cozinha:
— Ela não pode ficar aqui muito tempo, Daniel. Não temos privacidade.
— Eu sei, Maria. Mas ela está à procura de casa…
— Pois, mas isto não é vida para ninguém.
Ouvindo aquilo, decidi que não podia ficar mais um dia sequer. No dia seguinte arrumei as minhas coisas e fui para casa da minha irmã em Almada. Ela recebeu-me de braços abertos, mas percebi que também ali era apenas uma visita temporária.
Os dias passaram lentos e pesados. O telefone tocava pouco. O Daniel ligava de vez em quando, mas as conversas eram rápidas e cheias de silêncios constrangedores. A Maria nunca mais falou comigo.
Comecei a sentir uma solidão que nunca tinha sentido antes. A casa da minha irmã era pequena e ela tinha os próprios problemas: o marido doente, os netos sempre a correr pela casa. Eu tentava ajudar nas tarefas domésticas, mas sentia-me sempre deslocada.
Uma tarde, sentei-me no jardim do prédio e chorei como não chorava há anos. Senti raiva de mim própria por ter sido tão ingénua. Por ter acreditado que o amor de mãe era suficiente para garantir gratidão e respeito.
Os meses passaram e consegui finalmente arrendar um quarto numa casa partilhada com duas senhoras idosas em Setúbal. Não era o lar que eu sonhara para a minha velhice, mas pelo menos tinha algum sossego.
O Daniel raramente me visitava. Quando vinha, falava muito do trabalho e pouco de mim ou da nossa família. Um dia perguntei-lhe:
— Sentes falta dos tempos em que vivíamos todos juntos?
Ele encolheu os ombros:
— A vida muda, mãe. Temos de seguir em frente.
Senti uma dor aguda no peito. Era como se tudo aquilo que eu tinha feito por ele tivesse sido apagado por uma borracha invisível.
A Maria engravidou e nem sequer me convidaram para o chá de bebé. Fiquei a saber pelas redes sociais. Vi as fotos da festa no meu antigo apartamento: balões azuis pendurados na varanda onde tantas vezes pendurei roupa ao sol; sorrisos de amigos deles que eu nunca conheci; nenhuma menção à avó Teresa.
No Natal desse ano comprei um presente para o neto que estava para nascer: um casaquinho de lã azul feito por mim. Entreguei-o ao Daniel à porta do prédio deles porque “não dava jeito” eu subir naquele dia.
Quando nasceu o pequeno Tomás, só vi fotos pelo telemóvel. O Daniel dizia sempre:
— Um dia destes passas cá em casa para conheceres o Tomás.
Mas esse dia nunca chegava.
A solidão tornou-se uma sombra constante na minha vida. As outras senhoras com quem vivia tinham filhos que as visitavam todos os domingos; traziam netos barulhentos e bolos caseiros. Eu fingia estar ocupada quando eles vinham para não mostrar a inveja que sentia.
Um dia recebi uma carta do Daniel:
“Mãe,
Sei que as coisas não correram como esperávamos. A Maria acha melhor mantermos alguma distância por agora, para evitar conflitos desnecessários. Espero que estejas bem.
Daniel”
Li aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas me impedirem de continuar.
Perguntei-me onde tinha falhado como mãe. Teria sido demasiado protetora? Teria dado demais? Ou simplesmente o amor incondicional é uma armadilha onde caímos sozinhos?
Os anos passaram e fui aprendendo a viver com menos expectativas e mais silêncio. Fiz novas amizades no bairro; comecei a frequentar aulas de pintura na junta de freguesia; aprendi a cuidar de mim pela primeira vez em décadas.
Mas todas as noites, antes de adormecer, olho para uma fotografia antiga do Daniel em criança e pergunto-me: será que fiz bem? Será que ser mãe é mesmo dar tudo sem esperar nada em troca? Ou será que merecemos um pouco mais de reconhecimento e amor?
E vocês? Já sentiram que a vossa bondade se virou contra vocês? Até onde devemos ir por aqueles que amamos?