“Não vês que a tua mãe não gosta do nosso filho?”: Anos de Comparações até ao Limite

— Não vês que a tua mãe não gosta do nosso filho? — sussurrei, com a voz trémula, enquanto o Rui fingia não me ouvir, os olhos fixos no telemóvel. O Lourenço dormia no quarto ao lado, mas eu sentia o peso da noite a esmagar-me o peito.

A casa estava fria, não só pelo vento que entrava pelas frinchas das janelas velhas do nosso apartamento em Almada, mas pela ausência de calor humano. A Dona Teresa, minha sogra, tinha vindo jantar connosco outra vez — como fazia todas as quartas-feiras — e, como sempre, não perdera a oportunidade de comparar o Lourenço ao primo Tomás. “O Tomás já lê fluentemente, com seis anos! O Lourenço ainda troca os bês pelos dês…”, dizia ela, com aquele sorriso de quem acha que está a ajudar.

O Rui limitava-se a encolher os ombros. “A minha mãe é assim, Inês. Não ligues.” Mas como não ligar? Como ignorar quando vejo o meu filho encolher-se todo, os olhos a fugir dos dela, sempre que ela lhe faz perguntas difíceis ou lhe aponta defeitos? Sinto-me sozinha nesta luta. Sinto-me estrangeira na minha própria família.

Lembro-me da primeira vez que percebi que a Dona Teresa nunca me aceitaria verdadeiramente. Foi no nosso casamento. Ela olhou para mim com aquele ar crítico e disse: “Espero que saibas cozinhar bacalhau à Brás como deve ser.” Ri-me, nervosa, mas percebi logo ali que nunca seria suficiente.

Os anos passaram e as comparações só pioraram. Quando engravidei do Lourenço, ela disse ao Rui: “Espero que saia ao lado da família dele, porque do teu lado são todos tão fraquinhos…” Aguentei calada. Aguentei quando ela criticou a forma como amamentei, como vesti o meu filho, até como o penteava para ir à escola.

O Rui sempre foi um bom homem, mas fraco perante a mãe. Cresceu sem pai e ela era tudo para ele. Eu compreendo, mas há limites. E essa noite de inverno foi o limite.

Depois do jantar, enquanto arrumava a cozinha sozinha — porque a Dona Teresa nunca mexe uma palha — ouvi-a na sala com o Rui:

— O Lourenço está cada vez mais estranho. Não fala com ninguém, não tem amigos… devias fazer alguma coisa.

— Mãe, ele é só tímido… — respondeu o Rui, num tom baixo.

— Tímido? Isso é desculpa de quem não sabe educar! O Tomás já ganhou medalhas na natação! O Lourenço só sabe desenhar bonecos…

Senti as lágrimas a subir-me aos olhos. Fui à casa de banho e lavei a cara. Olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo apanhado à pressa, uma mulher cansada demais para lutar. Mas naquele momento, algo em mim mudou.

Quando ela se foi embora — sem sequer se despedir do Lourenço — sentei-me no sofá ao lado do Rui.

— Isto não pode continuar assim — disse-lhe. — O Lourenço está a sofrer. Eu estou a sofrer. E tu ficas sempre do lado dela.

Ele suspirou:

— Não é verdade…

— É sim! Nunca lhe dizes nada! Nunca me defendes! Achas normal ela dizer que o nosso filho é estranho? Achas normal ela comparar o Lourenço ao Tomás todos os jantares?

O Rui ficou calado. O silêncio entre nós era ensurdecedor.

Naquela noite quase não dormi. O Lourenço acordou a meio da noite com pesadelos. Sentei-me na beira da cama dele e ele abraçou-se a mim:

— Mãe… porque é que a avó não gosta de mim?

O meu coração partiu-se em mil pedaços.

— Gosta sim, filho… só não sabe demonstrar — menti-lhe, porque não tinha coragem para dizer a verdade.

No dia seguinte fui buscá-lo à escola mais cedo. A professora chamou-me à parte:

— O Lourenço anda muito calado… desenha sempre famílias onde uma das pessoas está afastada das outras. Já pensou em falar com alguém?

Saí da escola com um nó na garganta. Liguei ao Rui:

— Temos de fazer alguma coisa pelo nosso filho. Ele está a sofrer!

Ele respondeu:

— Não exageres, Inês…

Nesse momento percebi que estava sozinha.

Durante semanas tentei proteger o Lourenço das visitas da avó. Inventava desculpas para ela não vir cá a casa. Mas ela insistia:

— O que se passa? Não posso ver o meu neto?

Até que um dia apareceu sem avisar. Encontrou-me na cozinha a fazer bolachas com o Lourenço.

— Bolachas? Isso é comida de engorda! Depois admiram-se que ele seja tão molengão…

O Lourenço largou a colher e saiu da cozinha em silêncio.

Senti uma raiva antiga subir-me à garganta:

— Basta! — gritei. — Não admito mais que fale assim do meu filho!

Ela olhou para mim como se eu fosse louca:

— Eu só quero o melhor para ele!

— Não! Só quer sentir-se superior! Está sempre a comparar o Lourenço ao Tomás! Está sempre a dizer que ele não presta! E o Rui nunca diz nada!

Ela ficou vermelha e saiu porta fora sem dizer mais nada.

O Rui chegou tarde nesse dia. Quando lhe contei o que se passou, ele ficou furioso comigo:

— Tinhas mesmo de fazer uma cena? Agora a minha mãe está magoada!

— E eu? E o teu filho? Não contam?

Discutimos até às três da manhã. Pela primeira vez em dez anos disse-lhe tudo o que sentia: que me sentia sozinha, desamparada, invisível. Que estava farta de viver à sombra da mãe dele.

No dia seguinte fiz as malas e fui para casa da minha irmã em Setúbal com o Lourenço.

Foram semanas difíceis. O Lourenço chorava todas as noites. Eu sentia-me culpada por tudo: por ter gritado com a Dona Teresa, por ter deixado o Rui sozinho, por ter arrancado o meu filho da casa dele.

Mas aos poucos começámos a respirar melhor. O Lourenço fez novos amigos na escola da minha irmã. Começou a sorrir mais vezes. Um dia desenhou uma família unida pela primeira vez.

O Rui ligava todos os dias. No início só discutíamos. Depois começou a ouvir-me mais. Pediu desculpa por nunca me ter defendido. Disse que ia tentar mudar.

Voltámos para casa dois meses depois — mas com regras novas: as visitas da Dona Teresa seriam menos frequentes e nunca sem aviso prévio; qualquer comentário negativo sobre o Lourenço seria imediatamente interrompido; e acima de tudo, eu teria sempre voz naquela casa.

Não foi fácil reconstruir tudo. A Dona Teresa nunca pediu desculpa — mas também nunca mais fez comentários venenosos à frente do neto.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem assim, caladas, anuladas pelas famílias dos maridos? Quantos filhos crescem à sombra das comparações e das críticas? Será que vale sempre a pena lutar pela paz familiar ou há momentos em que temos mesmo de gritar basta?