“Não quero ter filhos” – A minha decisão, a minha luta. A história de uma mulher portuguesa que escolheu a si própria.
“Elvira, não podes estar a falar a sério.” A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o ar como uma faca. O cheiro do café acabado de fazer, que normalmente me acalmava, parecia agora enjoativo. Senti o olhar do meu pai pousado em mim, pesado, como se esperasse que eu recuasse, que dissesse que era só uma fase, uma provocação de filha crescida. Mas não era. Aos 34 anos, depois de muitas noites em claro, decidi: não quero ter filhos. E naquele domingo, entre o pão de centeio e a compota de abóbora, disse-o em voz alta pela primeira vez.
A minha irmã, a Mariana, olhou para mim com uma expressão entre o choque e a pena. Ela, mãe de dois, sempre foi a menina dos olhos dos meus pais. “Elvira, vais arrepender-te. Todas as mulheres querem ser mães, só ainda não encontraste o homem certo.” Ri-me, mas por dentro doía. Não era sobre homens, nem sobre encontrar alguém. Era sobre mim, sobre o meu corpo, os meus sonhos, o meu medo de perder a minha liberdade, de me apagar para dar vida a outro ser. Mas como explicar isso a quem sempre viu a maternidade como destino inevitável?
O silêncio caiu sobre a mesa. O meu pai pigarreou, como faz sempre que está desconfortável. “Na nossa família, sempre houve crianças. É assim que se constrói o futuro, filha. Não penses só em ti.” Senti o sangue ferver-me nas veias. “Pai, não é egoísmo. É honestidade. Não quero trazer uma criança ao mundo só porque é esperado de mim. Quero viver a minha vida, viajar, estudar, amar à minha maneira. Não quero ser mãe.”
A minha mãe levantou-se abruptamente, limpando as mãos ao avental. “Não percebo, Elvira. Sempre foste tão carinhosa com os teus sobrinhos. Como podes dizer uma coisa dessas?” Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. “Ser carinhosa não é o mesmo que querer ser mãe. Gosto dos meus sobrinhos, mas não quero ter filhos meus.”
Nos dias seguintes, a tensão em casa era palpável. As conversas tornaram-se curtas, os olhares fugidios. A Mariana mandava-me mensagens cheias de links para artigos sobre mulheres que se arrependeram de não ter filhos. A minha mãe chorava baixinho no quarto, achando que eu não ouvia. O meu pai evitava-me. Senti-me sozinha, como se tivesse traído a família, como se a minha escolha fosse uma afronta pessoal.
No trabalho, a pressão era diferente, mas igualmente sufocante. As colegas falavam dos filhos, das escolas, das birras. Quando diziam “Quando fores mãe vais perceber”, eu sorria amarelo. Uma vez, a Dona Rosa, a senhora da limpeza, disse-me: “Ainda vais a tempo, menina Elvira. Não deixes passar o comboio.” Sorri, mas por dentro gritava. Porque é que ninguém conseguia aceitar que eu estava bem assim?
Aos poucos, comecei a evitar os almoços de família. A minha mãe ligava-me todos os dias, perguntando se já tinha mudado de ideias. “Elvira, a vida passa num instante. Não vais querer ficar sozinha.” E eu pensava: antes só do que infeliz. Mas não dizia. Não queria magoá-la mais.
Uma noite, depois de mais uma discussão, saí de casa e fui até à praia. O mar estava revolto, o vento frio cortava-me a cara. Sentei-me na areia húmida e chorei. Chorei pela solidão, pela incompreensão, pelo medo de nunca ser aceite. Chorei por mim, pela menina que sempre quis agradar a todos e agora tinha de escolher entre a sua felicidade e a aprovação da família.
Foi aí que a minha avó, a Dona Amélia, me ligou. “Elvira, ouvi dizer que andas a causar confusão lá em casa.” Sorri, apesar das lágrimas. “Avó, só quero ser eu mesma. Não quero ser mãe. Não é para mim.” Do outro lado, silêncio. Depois, a voz dela, mais suave: “Sabes, eu também nunca quis ter filhos. Mas naquele tempo, não havia escolha. Casei, tive filhos, porque era o que se fazia. Mas sempre invejei as mulheres que podiam escolher. Se tens essa coragem, não deixes que ninguém te faça sentir menos mulher por isso.”
As palavras da minha avó foram um bálsamo. Pela primeira vez, senti-me compreendida. Não era um monstro, nem uma aberração. Era só uma mulher a tentar viver de acordo com a sua verdade.
Com o tempo, a relação com a família foi mudando. A minha mãe continuou a sonhar com netos, mas já não me pressionava tanto. A Mariana aceitou, a custo, que a nossa vida seria diferente. O meu pai demorou mais, mas um dia, ao ver-me feliz, disse: “O importante é que sejas feliz, filha.”
Hoje, aos 38 anos, olho para trás e vejo o caminho difícil que percorri. Ainda há dias em que me sinto sozinha, em que invejo a cumplicidade das mães no parque, em que me pergunto se fiz a escolha certa. Mas depois lembro-me de todas as noites em que dormi em paz, de todas as viagens, dos livros lidos, dos amores vividos sem culpa. E sei que, para mim, foi a decisão certa.
Será que alguma vez a sociedade portuguesa vai aceitar que ser mulher não é sinónimo de ser mãe? Quantas de nós ainda terão de lutar pelo direito de escolher o seu próprio caminho? Gostava de saber o que pensam. Já sentiram esta pressão? Como lidaram com ela?