“Mãe, podias ter dito que não…” – O verão em que perdi a mim mesma
— Mãe, podias ter dito que não… — A voz do meu filho, o Miguel, ecoava na sala, fria e distante. Senti o peito apertar-se, como se cada palavra dele fosse uma pedra a cair-me em cima. Olhei para ele, para a minha nora, a Joana, sentados no sofá com os braços cruzados, e tentei encontrar nas suas caras algum sinal de compreensão. Não havia. Só cansaço e irritação.
O verão estava a chegar ao fim e eu sentia-me exausta. Tinha passado quase três meses a cuidar dos meus netos, o Tomás e a Matilde, enquanto o Miguel e a Joana trabalhavam. Eles diziam sempre: “Mãe, só tu consegues dar conta deles”, “Avó, só tu tens paciência para as birras da Matilde”, “Não confiamos em mais ninguém”. Eu sorria, sentia-me útil, importante. Afinal, depois de tantos anos sozinha desde que o António morreu, os meus netos eram a minha alegria.
Mas agora, naquele final de agosto abafado, tudo parecia desmoronar-se. O Miguel estava irritado porque a Matilde tinha feito uma birra monumental no supermercado e eu não tinha conseguido acalmá-la. A Joana acusava-me de ser demasiado permissiva. “Deixas tudo passar! Depois admiras-te que ela não te respeite”, atirou ela, com aquela voz cortante que me fazia sentir uma criança outra vez.
Quis responder, quis explicar que estava cansada, que já não tinha a energia de outros tempos. Mas calei-me. Sempre me calei. Desde pequena que aprendi a engolir as palavras para evitar discussões. O meu pai era um homem duro e a minha mãe dizia sempre: “Filha, não vale a pena levantar ondas”. Talvez por isso tenha passado a vida inteira a tentar agradar aos outros.
Lembro-me do primeiro dia daquele verão. O Miguel ligou-me às sete da manhã:
— Mãe, desculpa ligar tão cedo… A Joana tem de ir ao hospital mais cedo hoje e eu tenho uma reunião importante. Podes ficar com os miúdos?
Nem hesitei:
— Claro, filho! Venham cá deixá-los.
E assim começou tudo. Dias inteiros com o Tomás e a Matilde. Pequenos-almoços apressados, corridas ao parque infantil do bairro, idas ao supermercado onde eles faziam questão de escolher os cereais mais caros. À noite, quando finalmente iam embora, eu sentava-me no sofá e deixava as lágrimas caírem em silêncio. Não era tristeza — era cansaço misturado com uma sensação estranha de vazio.
A meio do verão, comecei a sentir dores nas costas. Falei disso ao Miguel:
— Filho, acho que estou a ficar velha para isto…
Ele sorriu distraído:
— Oh mãe, tu és uma força da natureza! Aguentas tudo!
Aguento? Pensei muitas vezes nisso. Aguentei o António quando ele ficou doente e tive de ser eu a cuidar dele até ao fim. Aguentei quando perdi o emprego aos 55 anos e ninguém quis saber se eu ainda precisava de trabalhar. Aguentei quando fiquei sozinha naquela casa grande demais para mim.
Mas agora… agora parecia que já não aguentava mais.
Um dia, a Matilde caiu no parque e fez um galo enorme na testa. Corri com ela para o centro de saúde. Liguei à Joana:
— Joana, desculpa… A Matilde caiu e está aqui comigo nas urgências.
Do outro lado ouvi um suspiro impaciente:
— Outra vez? Não consegues ter mais cuidado?
Senti-me tão pequena naquele momento. Como se tudo o que fazia nunca fosse suficiente.
No final de agosto, quando finalmente sugeri que talvez pudessem procurar uma ama para ajudar-me alguns dias por semana, o Miguel ficou ofendido:
— Então agora já não queres ajudar? Sabes quanto custa uma ama? E depois dizem que as avós é que são família…
Fiquei sem palavras. Senti-me egoísta por pensar em mim própria.
Naquela noite, sentei-me à janela do meu quarto e olhei para as luzes da cidade. Lembrei-me da minha mãe, da forma como ela se anulou por todos nós até ao fim dos seus dias. Lembrei-me das vezes em que prometi a mim mesma que seria diferente — que teria voz própria, que saberia dizer não quando fosse preciso.
Mas ali estava eu, aos 67 anos, presa no mesmo ciclo.
No último dia do verão, quando fui devolver os miúdos ao Miguel e à Joana depois de mais uma tarde exaustiva no parque, ouvi-os discutir na cozinha:
— Ela está sempre cansada! — dizia a Joana.
— Pois… mas também não temos alternativa — respondeu o Miguel.
Entrei devagarinho na sala e sentei-me à espera que viessem falar comigo. Quando finalmente apareceram, foi aí que o Miguel disse aquela frase:
— Mãe, podias ter dito que não…
Olhei para ele com lágrimas nos olhos:
— E tu alguma vez me perguntaste se eu queria? Alguma vez te preocupaste em saber como eu estava?
O silêncio caiu pesado entre nós.
Nessa noite fui para casa com um nó na garganta. Senti-me usada, descartável. Passei horas acordada a pensar na minha vida — nas escolhas que fiz ou deixei de fazer por medo de magoar os outros.
No dia seguinte decidi escrever-lhes uma carta. Não sabia se teria coragem de lha entregar, mas precisava de pôr tudo cá fora:
“Queridos filhos,
Passei este verão convosco porque vos amo e amo os meus netos mais do que tudo nesta vida. Mas também sou humana. Também me canso, também preciso de descanso e de carinho. Não quero ser apenas alguém que está sempre disponível porque sim. Quero ser vossa mãe e vossa amiga — não apenas uma ama gratuita.”
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira. Ainda não tive coragem de lha entregar.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem em nunca dizer não? Será que o amor de mãe tem mesmo de ser incondicional até ao ponto de nos perdermos de nós próprias? E vocês — já sentiram isto alguma vez? Até onde vai o vosso amor?