“Mãe, não me deixes sozinho” – Quando o passado bateu à porta e a família se desfez
— Mãe, por favor, não faças isto agora. — A minha voz tremia, quase um sussurro, enquanto segurava o telemóvel com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Do outro lado, a minha mãe suspirou fundo, aquele suspiro pesado que eu conhecia desde criança, sempre prenúncio de tempestade.
— Francisco, precisamos falar. Não posso continuar assim, como se fosses um estranho. — A voz dela soava cansada, mas determinada. Eu sabia que ela não ia desistir até me arrancar uma resposta.
Fechei os olhos por um instante. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o da chuva que batia na janela da minha cozinha minúscula em Almada. Era sábado de manhã e eu só queria um pouco de paz, mas a paz era um luxo que há muito me escapava.
Desde que o meu pai morreu, há dois anos, a nossa família desmoronou-se como um castelo de cartas. A minha mãe, Maria do Céu, ficou irreconhecível: amarga, desconfiada, sempre pronta a apontar o dedo. Eu, por outro lado, refugiei-me no trabalho e no silêncio. O meu irmão mais novo, Rui, desapareceu para o Algarve e raramente dava notícias.
— Francisco? Estás aí? — insistiu ela.
— Estou. — Respondi finalmente. — Queres vir cá a casa?
— Não. Quero que venhas tu. Preciso de te mostrar uma coisa.
O tom dela não admitia discussão. Vesti o casaco e saí para a rua, sentindo o peso do passado a cada passo. O caminho até à casa onde cresci parecia mais longo do que nunca.
Quando cheguei, a porta estava entreaberta. Entrei devagarinho.
— Mãe?
Ela estava na sala, sentada no sofá com uma caixa de fotografias no colo. Olhou para mim com olhos vermelhos de tanto chorar.
— Senta-te aqui ao pé de mim. — Pediu num tom quase infantil.
Sentei-me e ela começou a tirar fotografias da caixa: eu e o Rui na praia da Costa da Caparica, o meu pai a segurar-nos ao colo, aniversários antigos com bolos caseiros e risos que agora pareciam pertencer a outra vida.
— Lembras-te disto? — perguntou ela, mostrando uma foto minha aos oito anos, com os joelhos esfolados e um sorriso desdentado.
Assenti em silêncio. O nó na garganta apertava cada vez mais.
— Eu falhei contigo, Francisco. — Disse ela de repente. — Depois do teu pai… eu não soube ser mãe. Afastei-vos a todos.
As palavras dela caíram como pedras. Sempre achei que era eu quem tinha falhado: por não estar presente, por não conseguir perdoar-lhe as acusações injustas depois da morte do meu pai, por não conseguir unir a família.
— Não digas isso… — tentei interromper.
— Deixa-me falar! — cortou ela, com lágrimas nos olhos. — Eu preciso de dizer isto antes que seja tarde demais.
O relógio da parede marcava as horas num tique-taque irritante. O cheiro a mofo misturava-se com o perfume barato dela. Senti-me novamente pequeno, impotente perante a dor dos adultos.
— Sabes porque é que o Rui foi embora? — perguntou ela de repente.
Abanei a cabeça.
— Ele descobriu sobre o empréstimo que fiz em nome dele para pagar as dívidas do teu pai. Nunca tive coragem de lhe contar… Ele soube pelo banco. Achas que algum dia me vai perdoar?
Fiquei sem palavras. O Rui nunca me contou nada disto. Sempre pensei que ele fosse apenas egoísta ou cobarde por fugir dos problemas.
— Mãe… porque não me disseste?
Ela encolheu os ombros, derrotada.
— Tinha vergonha. E tu… tu sempre foste tão parecido com o teu pai: calado, orgulhoso…
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Olhei para as fotografias espalhadas pelo sofá e senti uma raiva surda crescer dentro de mim: raiva dela, do meu pai, do Rui… mas sobretudo de mim próprio por nunca ter tido coragem de enfrentar tudo isto antes.
Levantei-me abruptamente.
— Preciso de ar.
Saí para o quintal onde costumava jogar à bola em miúdo. A chuva tinha parado e o cheiro da terra molhada trouxe-me memórias antigas: os gritos do meu pai a ensinar-me a dar toques na bola, as gargalhadas do Rui quando caíamos os dois na lama.
A minha mãe apareceu à porta, encolhida no seu robe velho.
— Francisco…
Virei-me para ela.
— E agora? O que é que fazemos com isto tudo?
Ela hesitou antes de responder:
— Não sei. Mas queria pedir-te desculpa… e pedir-te ajuda para falar com o teu irmão. Sozinha não consigo.
Olhei para ela e vi pela primeira vez não a mulher dura e fria dos últimos anos, mas uma mãe assustada e arrependida.
Naquela noite liguei ao Rui. A voz dele soou distante ao telefone.
— O que é que queres?
— Precisamos falar. Sobre a mãe… sobre tudo.
Houve um silêncio longo do outro lado da linha antes dele responder:
— Achas mesmo que vale a pena?
Não soube o que dizer. Mas combinei encontrá-lo no fim-de-semana seguinte em Lisboa.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções: raiva, tristeza, esperança tímida. A minha mãe ligava-me todos os dias para perguntar se já tinha falado com o Rui; eu respondia sempre que sim, mas evitava dar detalhes.
No sábado seguinte encontrámo-nos num café perto do Rossio. O Rui estava mais magro e tinha olheiras profundas.
— Então? — perguntou ele sem rodeios.
Respirei fundo e contei-lhe tudo: o empréstimo, as dívidas do nosso pai, o arrependimento da mãe.
Ele ouviu em silêncio e no fim abanou a cabeça.
— Sabes qual é o problema desta família? Nunca ninguém diz nada até ser tarde demais.
Ficámos ali sentados durante horas, sem saber como reconstruir aquilo que se tinha partido há tanto tempo.
Quando voltei para casa da minha mãe naquela noite, ela estava à minha espera na sala escura.
— E então?
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão pela primeira vez em anos.
— Vai demorar tempo… mas talvez ainda haja esperança para nós.
Ela chorou baixinho e eu deixei-me ficar ali ao lado dela até adormecer.
Agora escrevo estas linhas enquanto olho para uma fotografia antiga dos três: eu, o Rui e a minha mãe num piquenique no Parque Eduardo VII. Pergunto-me se algum dia conseguiremos voltar a ser aquela família feliz ou se certas feridas nunca chegam verdadeiramente a sarar.
Será possível perdoar tudo? Ou há coisas que ficam para sempre entre nós como sombras? E vocês… já sentiram este peso na vossa família?