Mãe, És Uma Avó Agora!

— Mãe, todas as avós tomam conta dos netos. E devias vestir-te de acordo com a tua idade — disse a minha filha, Joana, com aquele tom entre o aborrecido e o crítico que só ela sabe usar.

Olhei para ela, sentada à minha frente na cozinha, com as mãos cruzadas sobre a mesa. O sol entrava pela janela e iluminava-lhe o rosto, mas não conseguia aquecer o gelo que se instalara entre nós. Senti o coração apertar-se, como tantas outras vezes desde que me reformei e passei a ser, oficialmente, “avó”.

— Joana, eu amo os meus netos. Mas também tenho direito à minha vida — respondi, tentando manter a voz firme.

Ela suspirou alto, revirando os olhos.

— Mãe, não percebes? Toda a gente espera isso de ti. A Leonor, a mãe do Rui, vai buscar os netos à escola todos os dias. E tu? Andas nessas aulas de dança, a vestir-te como se tivesses vinte anos!

Senti-me pequena. O vestido azul que usava parecia agora demasiado ousado, demasiado alegre para uma mulher de sessenta e dois anos. Mas era o meu favorito. Lembrei-me de quando o comprei, há dois meses, com a minha amiga Teresa no centro comercial. Rimo-nos tanto nesse dia…

— Joana, eu trabalhei quarenta anos. Passei noites sem dormir para te criar sozinha depois que o teu pai nos deixou. Agora quero aproveitar um pouco…

Ela interrompeu-me:

— Não é disso que se trata! Só te peço para seres uma avó normal. Não quero ouvir comentários das outras mães na escola.

Fiquei em silêncio. “Uma avó normal”. O que é isso? Uma mulher invisível, de cabelo preso num coque, avental e chinelos? Uma sombra que existe apenas para servir os outros?

Levantei-me da mesa e fui até à janela. Lá fora, o jardim que tanto me custou a manter estava cheio de flores. As rosas vermelhas que plantei no ano passado estavam finalmente a florir. Senti uma lágrima escorrer pelo rosto.

Lembrei-me da minha mãe. Ela era tudo aquilo que Joana queria que eu fosse: submissa, discreta, sempre pronta para cuidar dos netos e da casa dos outros. Morreu cedo, cansada e esquecida.

— Joana — disse baixinho —, não quero desaparecer como a avó Maria.

Ela ficou calada por um momento. Depois levantou-se bruscamente.

— Faz como quiseres — disse ela antes de sair, batendo com a porta.

Fiquei ali parada, ouvindo o silêncio pesado da casa. Senti-me sozinha como há muito não sentia. O relógio da parede marcava as dez da manhã. Tinha aula de dança às onze.

Fui ao quarto e olhei-me ao espelho. O cabelo grisalho caía-me pelos ombros em ondas suaves. Os olhos castanhos tinham rugas nos cantos, mas ainda brilhavam quando eu sorria. Vesti um casaco leve por cima do vestido azul e saí.

No caminho para a escola de dança, pensei em tudo o que Joana dissera. Será que estava mesmo errada? As outras mulheres da minha idade pareciam aceitar o papel de avó sem questionar. Mas eu não conseguia.

A Teresa já me esperava à porta da escola.

— Estás com um ar abatido hoje — disse ela.

— Tive mais uma discussão com a Joana…

Ela abanou a cabeça.

— A minha filha é igualzinha. Acham que agora só existimos para os netos e para elas…

Entrámos na sala e deixei-me levar pela música. Durante uma hora esqueci tudo: as críticas da Joana, as expectativas da sociedade, as dores nas costas. Só existia eu e a dança.

No final da aula, sentei-me no banco do balneário e olhei para as outras mulheres à minha volta. Algumas eram avós como eu; outras nunca tiveram filhos. Todas tinham histórias de sacrifício e renúncia. Mas ali éramos apenas mulheres a tentar reencontrar um pedaço de alegria.

Quando cheguei a casa, encontrei uma mensagem no telemóvel:

“Mãe, desculpa ter sido dura contigo. Só queria que estivesses mais presente para os miúdos.”

Sentei-me no sofá e respirei fundo. Peguei no telefone e liguei-lhe.

— Joana… Eu amo os teus filhos como se fossem meus. Mas preciso de ser mais do que só avó deles. Preciso de ser eu própria também.

Ela ficou em silêncio do outro lado.

— Eu sei… — disse finalmente — Só tenho medo de perder-te para essa nova vida…

Senti um nó na garganta.

— Nunca me vais perder. Mas preciso de espaço para viver também.

Passaram-se dias até voltarmos a falar normalmente. Entretanto, continuei com as minhas aulas de dança, comecei um curso de pintura e até fui ao cinema sozinha pela primeira vez em anos.

Um domingo à tarde, Joana apareceu cá em casa com os miúdos.

— Avó! — gritaram eles ao entrarem pela porta — Vens brincar connosco?

Sorri-lhes e sentei-me no chão da sala com eles. Brincámos durante horas: construímos castelos de legos, fizemos desenhos e até dançámos juntos ao som da rádio.

Quando Joana veio buscar os meninos, ficou à porta a observar-nos por um momento. Depois sorriu timidamente.

— Obrigada por hoje…

Abracei-a forte.

— Não tens de agradecer. Só preciso que me deixes ser quem sou.

Ela assentiu devagar.

Naquela noite, sentei-me à janela do meu quarto a olhar para as luzes da cidade ao longe. Pensei em todas as mulheres portuguesas que vivem presas às expectativas dos outros: mães sacrificadas, avós invisíveis, mulheres esquecidas nos seus próprios desejos.

Será que algum dia vamos poder ser tudo aquilo que sonhámos? Ou estaremos sempre divididas entre o que esperam de nós e aquilo que realmente somos?

E vocês? Também sentem este peso? O que fariam no meu lugar?