“Faz as malas e muda-te!” – A minha sogra disse-me depois do nascimento da nossa filha: Será possível encontrar equilíbrio quando não há limites?
— Faz as malas e muda-te! — gritou a minha sogra, Dona Lurdes, com uma voz que ecoou pela casa como um trovão inesperado. Eu estava sentada no sofá, com a minha filha Leonor ao colo, ainda a tentar perceber se aquilo era mesmo real ou apenas mais um dos meus pesadelos recorrentes desde que ela se tinha mudado para nossa casa. O cheiro do café queimado misturava-se com o choro da bebé, e o meu coração batia tão forte que quase não conseguia ouvir mais nada.
— Mãe, por favor… — tentou intervir o Miguel, o meu marido, mas Dona Lurdes nem lhe deu tempo.
— Não me venhas com desculpas! Esta casa precisa de ordem, e tu sabes que a tua mulher não percebe nada disto! — continuou ela, apontando-me o dedo como se eu fosse uma criança apanhada a fazer asneiras.
Eu sentia-me esmagada. Desde o nascimento da Leonor, há três meses, que Dona Lurdes tinha decidido que era melhor vir “ajudar-nos”. No início, aceitei de bom grado. Afinal, quem não quer uma mão extra quando se é mãe de primeira viagem? Mas rapidamente percebi que a ajuda dela vinha com condições: tudo tinha de ser feito à maneira dela. Desde a forma como dava banho à Leonor até à maneira como organizava os armários da cozinha.
— Rita, tu não sabes sequer fazer um caldo verde decente! — dizia ela, enquanto despejava sal na panela sem sequer provar.
Eu tentava respirar fundo e lembrar-me de que ela só queria ajudar. Mas cada dia era uma batalha. O Miguel estava sempre a trabalhar até tarde no escritório de advogados onde era sócio júnior. Eu ficava sozinha com Dona Lurdes e a Leonor, sentindo-me cada vez mais pequena dentro da minha própria casa.
Uma noite, depois de adormecer a Leonor, fui à cozinha buscar um copo de água. Encontrei Dona Lurdes sentada à mesa, a folhear um álbum antigo de fotografias do Miguel.
— Sabes, Rita… — começou ela, sem levantar os olhos — Eu criei o Miguel sozinha depois que o pai dele morreu. Sei o que é sacrificar tudo por um filho. Não quero ver o meu neto crescer sem valores.
— A Leonor é uma menina… — corrigi eu, tentando sorrir.
Ela olhou-me finalmente, com um olhar frio.
— Menina ou menino, não interessa. O que interessa é que aprenda a respeitar as tradições da família.
Senti um nó na garganta. Que tradições eram essas? As dela? E eu? Onde ficava eu nesta equação?
Os dias passavam e as discussões tornavam-se mais frequentes. Uma vez, Dona Lurdes entrou no nosso quarto sem bater à porta enquanto eu amamentava.
— Não podes dar-lhe mama cada vez que ela chora! Vais estragar a miúda! — exclamou ela.
— É o pediatra que recomenda… — tentei explicar.
— Pediatra? No meu tempo não havia nada disso e olha como o Miguel ficou! — respondeu ela, orgulhosa.
O Miguel tentava mediar os conflitos, mas acabava sempre por ceder à mãe. Eu sentia-me cada vez mais sozinha. Comecei a evitar estar em casa. Passeava com a Leonor pelo bairro de Campo de Ourique durante horas, só para não ter de enfrentar mais uma crítica ou mais uma invasão de privacidade.
Certa tarde, encontrei a minha amiga Inês no jardim da Parada.
— Estás com um ar péssimo… — disse ela, preocupada.
Desabei em lágrimas ali mesmo, no banco do jardim.
— Não aguento mais… Sinto que perdi o controlo da minha vida. A Dona Lurdes manda em tudo e o Miguel não faz nada!
Inês abraçou-me e sugeriu:
— Tens de falar com ele. Isto não pode continuar assim. A tua saúde mental está em risco.
Naquela noite, depois de adormecer a Leonor, sentei-me ao lado do Miguel na sala.
— Precisamos de conversar — disse-lhe, tentando manter a voz firme.
Ele largou o telemóvel e olhou para mim.
— Eu sei que isto está difícil… Mas a minha mãe só quer ajudar.
— Não é ajuda quando me faz sentir uma intrusa na minha própria casa! Preciso do meu espaço, Miguel. Preciso que tu estejas do meu lado.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos eternos.
— E se pedíssemos à minha mãe para ir para casa dela durante uns tempos? — sugeriu finalmente.
Senti uma pontinha de esperança. Mas no dia seguinte, quando Miguel falou com Dona Lurdes, ela explodiu:
— Então é assim? Depois de tudo o que fiz por ti? Agora sou descartável?
Ela fez as malas em fúria e saiu porta fora sem olhar para trás. O silêncio que ficou na casa foi ensurdecedor. Durante dias, Miguel mal falava comigo. Sentia-se culpado por ter magoado a mãe e eu sentia-me culpada por ter causado aquela situação.
A Leonor chorava mais do que nunca. Eu estava exausta e cheia de dúvidas. Será que tinha feito bem? Será que era mesmo eu o problema?
Uma noite, recebi uma mensagem da Dona Lurdes: “Quando precisares de mim, sabes onde estou.” Senti um misto de alívio e tristeza. Afinal, ela era avó da minha filha. E eu sabia que nunca conseguiria afastá-la completamente das nossas vidas.
O tempo passou e as feridas foram sarando devagarinho. O Miguel começou a perceber o quanto eu precisava dele presente — não só fisicamente, mas emocionalmente também. Começámos a estabelecer pequenas regras: visitas combinadas com antecedência, respeito pelo nosso espaço e decisões tomadas em conjunto.
A relação com Dona Lurdes nunca voltou a ser igual, mas aprendi a impor limites sem culpa. Aprendi também que ser mãe é muitas vezes um exercício de equilíbrio impossível entre agradar aos outros e cuidar de nós próprias.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres passam pelo mesmo sem nunca terem coragem de dizer basta? Será possível encontrar um verdadeiro meio-termo quando as fronteiras são constantemente desrespeitadas? E vocês, já sentiram que perderam o controlo da vossa própria vida dentro da vossa casa?