Expulsei o meu filho e a nora de casa — só então percebi quantos anos vivi refém da culpa
— Mãe, não podes fazer isto connosco! — gritou o Paulo, com os olhos vermelhos de raiva e desespero, enquanto a Ana, a minha nora, chorava baixinho encostada à porta do quarto. Eu sentia o coração a bater tão forte que quase me sufocava. As palavras dele ecoavam pela casa como um trovão, mas eu já não conseguia voltar atrás.
Como é que cheguei aqui? Como é que uma mãe expulsa o próprio filho de casa? Perguntava-me isso vezes sem conta, enquanto olhava para as malas deles no corredor. Mas a verdade é que já não aguentava mais. Durante anos vivi presa a um sentimento de culpa — culpa por ter sido demasiado exigente, por ter trabalhado demais, por não ter estado presente em todos os momentos importantes da vida do Paulo. E ele sabia disso. Toda a gente sabia.
Quando o Paulo perdeu o emprego no ano passado, ligou-me a chorar. “Mãe, só precisamos de ficar aí umas semanas até eu arranjar trabalho outra vez”, disse-me. Claro que disse que sim. Sempre disse que sim. Sempre fui aquela mãe que resolve tudo, que acolhe, que perdoa. A Ana estava grávida de três meses e parecia tão frágil. Achei que seria só uma fase.
Mas as semanas passaram e transformaram-se em meses. O Paulo começou a passar os dias no sofá, agarrado ao telemóvel ou à consola. A Ana, cada vez mais grávida, reclamava de tudo: da comida, do barulho dos vizinhos, do cheiro da casa. Eu tentava agradar-lhes — cozinhava os pratos preferidos do Paulo, comprava bolos para a Ana, fazia tudo para que se sentissem bem. Mas nada era suficiente.
— Mãe, podias pelo menos comprar pão fresco todas as manhãs — dizia o Paulo, sem sequer me olhar nos olhos.
— Ana não pode comer pão de ontem, sabes como ela fica maldisposta — acrescentava ele, como se eu fosse uma empregada.
No início calei-me. Achei que era só o stress da situação. Mas depois começaram as discussões. A Ana implicava com tudo o que eu fazia: “Dona Teresa, não devia usar tanto sal na comida”, “Dona Teresa, não devia pôr as roupas do bebé na máquina com as nossas”. O Paulo defendia-a sempre. Eu sentia-me cada vez mais pequena dentro da minha própria casa.
Uma noite ouvi-os a falar no quarto:
— A tua mãe é mesmo insuportável às vezes — disse a Ana.
— Deixa lá, ela sente-se culpada por tudo. Se insistirmos mais um bocado ainda conseguimos que ela nos ajude com o dinheiro para a renda quando arranjarmos casa — respondeu o Paulo.
Fiquei gelada. Senti-me traída. O meu próprio filho via em mim apenas uma fonte de recursos e culpa. Passei a noite em claro, a pensar em todas as vezes que abdiquei de mim para lhes dar tudo.
No dia seguinte tentei falar com eles:
— Paulo, precisamos de conversar. Isto não pode continuar assim.
Ele nem me deixou acabar:
— Já vais começar? Não vês que estamos numa situação difícil? Sempre foste assim, nunca compreendeste nada!
A Ana revirou os olhos e saiu da sala.
Os dias seguintes foram um inferno. O ambiente estava insuportável. Eu sentia-me uma intrusa na minha própria casa. Comecei a evitar sair do quarto para não os enfrentar. Chorava sozinha à noite, com medo do futuro e vergonha de mim mesma.
Foi então que recebi uma chamada da minha irmã, a Helena:
— Teresa, tu não tens obrigação de carregar o mundo às costas. O Paulo já é adulto! Eles estão a abusar de ti.
Chorei ao telefone como há muito tempo não chorava. Senti-me compreendida pela primeira vez em meses.
Na manhã seguinte tomei uma decisão. Preparei o pequeno-almoço para eles como sempre fazia, mas desta vez sentei-me à mesa e esperei que acabassem de comer.
— Paulo, Ana… preciso que procurem outro sítio para ficar. Não posso continuar assim.
O Paulo ficou em choque:
— Estás a expulsar-nos?
— Estou a pedir-vos que sejam responsáveis pelas vossas vidas — respondi, com a voz a tremer.
A Ana começou a chorar alto:
— Como é que pode fazer isto connosco? Eu estou grávida!
Senti-me um monstro. Mas mantive-me firme.
Durante dois dias ignoraram-me completamente enquanto faziam as malas. No dia em que saíram, o Paulo nem se despediu. Só ouvi a porta a bater com força e depois o silêncio mais pesado da minha vida.
Nos dias seguintes andei perdida pela casa vazia. Senti falta do barulho deles, das discussões até… Senti falta do caos porque era isso que me fazia sentir necessária. Mas aos poucos comecei a perceber como era bom voltar a ter paz. Como era bom poder respirar sem medo de desiludir alguém.
A culpa ainda me visitava todas as noites, mas agora era diferente. Comecei a pensar nas vezes em que me anulei para agradar aos outros — ao Paulo, ao meu ex-marido, até aos meus pais quando era jovem. Sempre vivi para os outros e esqueci-me de mim.
Um dia recebi uma mensagem do Paulo: “Precisamos falar”. O coração disparou outra vez. Encontrámo-nos num café perto da minha casa.
— Mãe… desculpa — disse ele, sem conseguir olhar-me nos olhos.
— Só agora percebo como fui injusto contigo.
Chorei ali mesmo à frente dele. Abracei-o como se fosse ainda aquele menino pequeno que tinha medo do escuro.
A Ana teve o bebé pouco tempo depois. Não me convidaram para ir ao hospital. Doeu muito, mas aceitei. Aos poucos fomos reconstruindo alguma relação — mais distante, mas mais saudável.
Hoje olho para trás e percebo: quanto tempo perdi presa à culpa? Quantas vezes deixei que abusassem dos meus sentimentos só porque achava que devia compensar os meus erros?
Será que ser mãe é mesmo isto — dar tudo até não sobrar nada? Ou será que também temos direito ao nosso próprio espaço e paz? Gostava de saber se outras mães já passaram pelo mesmo…