“Era só por uns meses” – Três anos na sombra da minha própria vida
— Mãe, eu juro que é só até encontrar outro emprego. Duas, três semanas no máximo. — A voz da Mariana tremia ao telefone, e eu, como sempre, não soube dizer que não.
Lembro-me de olhar para o relógio da cozinha naquela manhã de março, o cheiro do café a misturar-se com o nervosismo que me apertava o peito. O meu marido, António, já tinha saído para o trabalho. A casa estava silenciosa, mas eu sentia o peso de uma decisão que ainda nem tinha tomado.
— Vais mesmo aceitar? — perguntou a minha irmã, Teresa, quando lhe contei. — Já não tens idade para andar a correr atrás de crianças.
— É só por umas semanas — repeti, tentando convencer-me mais a mim do que a ela.
Na primeira noite em que os miúdos dormiram cá, o João acordou a chorar às três da manhã. A Leonor fez birra porque queria dormir com a luz acesa. Eu, entre lençóis amarrotados e promessas de histórias inventadas, senti-me vinte anos mais velha. Mas também senti um orgulho estranho: estava a ajudar a minha filha, a ser útil.
O tempo passou. As semanas transformaram-se em meses. Mariana arranjou um trabalho novo, mas os horários eram piores do que antes. — Mãe, não consigo pagar uma ama. Só tu me podes ajudar — dizia ela, com olheiras fundas e voz cansada.
António começou a resmungar:
— Isto não pode continuar assim. A nossa vida ficou de pernas para o ar. Já nem temos tempo um para o outro.
Eu tentava equilibrar tudo: preparar lanches, levar e buscar os miúdos à escola, ajudar nos trabalhos de casa. Os meus próprios hobbies — as aulas de pintura, os passeios com as amigas — foram ficando para trás. Quando dava por mim, já não sabia o que gostava de fazer. Só sabia que tinha de estar disponível.
A Teresa ligava-me todas as semanas:
— Tu não és mãe da Mariana outra vez. És avó! Tens direito à tua vida.
Mas como podia eu virar costas? Lembrava-me bem de quando era eu a precisar da minha mãe e ela dizia sempre “sim”. Sentia-me presa entre a culpa e o dever.
Houve dias em que me zanguei com Mariana. Uma noite, depois de um jantar caótico em que a Leonor entornou sopa no tapete e o João fez birra porque queria ver televisão até tarde, sentei-me no sofá e chorei baixinho. Mariana chegou tarde e nem reparou nos meus olhos vermelhos.
— Mãe, desculpa. Sei que isto é muito para ti… — murmurou ela, mas logo mudou de assunto para as contas da casa e as dificuldades no trabalho.
António afastou-se cada vez mais. Começou a sair sozinho ao fim de semana, dizia que precisava de ar puro. Eu sentia-me sozinha mesmo rodeada de gente pequena e barulhenta.
No Natal passado, tentei reunir todos à mesa. Mas Mariana chegou atrasada, António estava calado e os miúdos discutiam por causa dos brinquedos. Senti uma tristeza funda: aquela família pela qual eu tanto lutava parecia desmoronar-se.
Certa noite, depois de deitar os netos, sentei-me à janela com uma chávena de chá frio nas mãos. Olhei para a rua vazia e perguntei-me: “Quando foi a última vez que fiz algo só para mim?”
No dia seguinte, decidi falar com Mariana:
— Filha, precisamos de conversar. Eu amo os teus filhos como se fossem meus, mas estou cansada. Sinto falta da minha vida.
Ela olhou para mim como se eu tivesse dito algo proibido.
— Mãe… eu não consigo sozinha…
— Mas eu também não consigo assim — respondi, sentindo as lágrimas a quererem saltar outra vez.
Foi uma conversa difícil. Mariana sentiu-se traída; António ficou aliviado; eu fiquei dividida entre o alívio e a culpa.
Comecei a impor limites: agora só fico com os miúdos dois dias por semana. Voltei às aulas de pintura. Marquei um almoço com as amigas que já não via há meses. António sorriu-me pela primeira vez em muito tempo.
Mas nada voltou a ser como antes. A relação com Mariana ficou tensa; ela acha que a abandonei num momento difícil. Os miúdos perguntam porque já não dormem cá tantas vezes.
Às vezes pergunto-me: fiz bem? Ou devia ter continuado a sacrificar-me em silêncio?
E vocês? Até onde iriam por um filho? Onde está o limite entre ajudar e perder-se completamente?