Entre Silêncios e Orações: O Dia em que Encontrei Paz com a Minha Mãe

— Não percebes mesmo nada do que eu sinto, pois não, mãe?

A minha voz ecoou pela cozinha, trémula, carregada de uma raiva antiga. A minha mãe, Maria do Carmo, estava de costas para mim, a mexer no tacho como se o arroz fosse mais importante do que tudo o resto. O cheiro do refogado misturava-se com o peso das palavras que nunca tínhamos coragem de dizer.

Ela suspirou, pousou a colher de pau e virou-se devagar. Os olhos dela, tão parecidos com os meus, estavam cansados. — Filha, eu só quero o melhor para ti. Não percebes isso?

A verdade é que não percebia. Ou talvez não quisesse perceber. Desde que o meu pai morreu, há três anos, tudo mudou entre nós. A casa ficou mais fria, as conversas mais curtas, os silêncios mais longos. Eu sentia-me presa numa rotina de obrigações e expectativas que não eram minhas. E ela… ela parecia esperar que eu preenchesse o vazio que o meu pai deixou.

— O melhor para mim? Ou o melhor para ti? — atirei, incapaz de conter as lágrimas. — Eu não sou o pai! Eu não consigo ser tudo para ti!

Ela ficou calada. Oiço o tique-taque do relógio da parede, cada segundo uma martelada no peito. Senti-me horrível por gritar com ela, mas também cansada de ser sempre eu a ceder.

Naquela noite, fechei-me no quarto e chorei até adormecer. Acordei com a luz da manhã a entrar pelas persianas e uma sensação de vazio ainda maior. Fui à casa de banho lavar a cara e olhei-me ao espelho: olhos inchados, cabelo desgrenhado, uma sombra da rapariga que era antes de tudo isto.

No pequeno-almoço, o silêncio era absoluto. A minha mãe serviu-me café sem me olhar nos olhos. Sentei-me à mesa e mexi no pão sem vontade. O rádio tocava baixinho uma música triste da Mariza.

— Vais à missa hoje? — perguntou ela de repente.

Assenti com a cabeça. Era domingo e, apesar de tudo, nunca deixava de ir à missa com ela. Era o único momento em que parecíamos estar em sintonia, mesmo sem falar.

Na igreja, sentei-me ao lado dela no banco da frente. O padre António falava sobre perdão e reconciliação. As palavras dele batiam fundo no meu coração: “Às vezes, perdoar é um acto de coragem maior do que qualquer outro.” Olhei para a minha mãe de soslaio; ela tinha as mãos apertadas no colo e os olhos fechados em oração.

Depois da missa, fomos ao café do costume. A minha mãe pediu um galão e eu um chá de limão. O senhor Manuel, dono do café, cumprimentou-nos com um sorriso triste — toda a vila sabia da nossa perda e das nossas dificuldades.

— Sabes, filha — começou ela, mexendo o galão devagar — quando o teu pai morreu, eu perdi metade de mim. Mas tu… tu és tudo o que me resta.

As lágrimas vieram-lhe aos olhos e eu senti um nó na garganta. Pela primeira vez em muito tempo, vi a minha mãe como uma mulher frágil, não como uma figura autoritária.

— Eu também perdi uma parte de mim — respondi baixinho. — E às vezes sinto que não consigo respirar aqui…

Ela estendeu a mão por cima da mesa e apertou a minha. O gesto simples fez-me chorar ali mesmo, no meio do café.

Voltámos para casa em silêncio, mas era um silêncio diferente — menos pesado, mais cúmplice. À noite, fechei-me no quarto e rezei como há muito não fazia:

“Deus, ajuda-me a perdoar a minha mãe. Ajuda-me a entender a dor dela e a mostrar-lhe a minha.”

Nos dias seguintes, tentei mudar pequenas coisas: ofereci-me para ajudar mais em casa sem esperar reconhecimento; sentei-me com ela a ver novelas mesmo quando não me apetecia; perguntei-lhe sobre o passado dela, sobre como conheceu o pai.

Uma noite, enquanto lavávamos a loiça juntas, ela contou-me como foi difícil crescer sem mãe — a avó morreu quando ela tinha dez anos — e como sempre teve medo de ficar sozinha.

— Quando tu gritas comigo… sinto que estou sozinha outra vez — confessou.

Abracei-a ali mesmo, com as mãos ainda molhadas de detergente.

Os conflitos não desapareceram de um dia para o outro. Houve discussões sobre dinheiro, sobre os meus estudos na universidade do Porto (ela queria que eu ficasse na vila; eu queria ir embora), sobre namorados que ela achava “pouco sérios”. Mas comecei a ver cada discussão como uma oportunidade para rezar mais — por paciência, por compreensão.

Um dia, depois de mais uma discussão sobre o meu futuro (“Vais deixar-me sozinha nesta casa?”), fui dar uma volta até ao miradouro da vila. Sentei-me no banco onde costumava ir com o meu pai e chorei tudo outra vez.

Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado sem dizer nada durante muito tempo. Depois perguntou:

— Sabes qual é o segredo para viver em paz?

Abanei a cabeça.

— É aceitar que nunca vamos entender tudo nem todos… mas podemos amar mesmo assim.

Aquelas palavras ficaram comigo durante dias. Comecei a rezar não só por mim ou pela minha mãe, mas por todas as mães e filhas presas em silêncios dolorosos.

No aniversário do meu pai, fizemos juntas um bolo de laranja como ele gostava. Rimos das asneiras que fizemos na cozinha e chorámos abraçadas quando ouvimos a música preferida dele na rádio.

A fé não resolveu todos os nossos problemas — mas deu-nos força para continuar a tentar. Aos poucos, fui percebendo que perdoar não é esquecer ou fingir que nada aconteceu; é escolher amar apesar das feridas.

Hoje olho para trás e vejo quanto crescemos juntas neste caminho difícil. Ainda discutimos (quem não discute?), mas agora sabemos pedir desculpa e recomeçar.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas em silêncios como os nossos? E se todos tivéssemos coragem de rezar uns pelos outros… será que encontraríamos paz também?