Entre Silêncios e Gritos: O Peso de Ser Mãe em Portugal
— Mãe, porque é que nunca tens tempo para mim? — A voz do Tiago ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado da noite. Eu estava de costas, a lavar a loiça, mas senti cada palavra como se fosse um murro no estômago. O som da água a correr já não abafava os meus pensamentos.
Respirei fundo, tentando engolir as lágrimas que ameaçavam cair. “Não é verdade, Tiago,” menti, sem coragem de o olhar nos olhos. Mas ele não respondeu. Limitou-se a sair da cozinha, arrastando os pés pelo corredor estreito do nosso apartamento em Benfica.
A verdade é que eu própria já não sabia quem era. Desde que o pai do Tiago nos deixou — ou melhor, desde que eu o mandei embora depois de mais uma noite de discussões e promessas quebradas — que tudo ficou mais difícil. O trabalho no escritório de contabilidade era sufocante, mas era o que pagava as contas. Todos os dias acordava antes do sol nascer, preparava o pequeno-almoço, deixava o Tiago na escola e corria para o autocarro 726. O resto do dia era uma sucessão de números, faturas e clientes impacientes.
À noite, quando finalmente chegava a casa, só queria silêncio. Mas o Tiago queria falar, queria brincar, queria saber porque é que as estrelas brilhavam mais no inverno ou porque é que o avô já não vinha cá jantar aos domingos. Eu respondia com monossílabos ou então dizia-lhe para ir ver televisão. Sentia-me culpada, mas também exausta.
A minha mãe dizia-me muitas vezes: “Marta, tens de ser forte pelo teu filho.” Mas ela própria nunca foi exemplo de força. Cresci a ouvir os gritos dela e do meu pai a atravessarem as paredes finas do nosso T2 em Chelas. Lembro-me das noites em que me encolhia na cama, a rezar para que tudo acabasse depressa. Prometi a mim mesma que nunca faria o Tiago sentir-se assim — sozinho no meio do caos.
Mas será que estava a cumprir essa promessa?
Naquela noite, depois do Tiago se fechar no quarto, sentei-me à mesa da cozinha e olhei para as mãos vermelhas da água quente. Senti uma raiva surda — contra mim mesma, contra o ex-marido que nunca mais ligou ao filho, contra a minha mãe por nunca ter sabido amar sem condições.
No dia seguinte, acordei com o som da chuva a bater nas janelas. Preparei torradas e leite com chocolate para o Tiago. Quando ele se sentou à mesa, olhou-me de lado.
— Hoje podes ir buscar-me à escola? — perguntou baixinho.
Ia dizer-lhe que não podia, que tinha uma reunião importante com um cliente espanhol. Mas calei-me. Vi nos olhos dele uma esperança tímida, quase infantil. Senti-me pequena.
— Vou tentar sair mais cedo — prometi.
O dia arrastou-se no escritório. O telefone tocava sem parar; a chefe gritava por causa de um erro numa folha de Excel; uma colega chorava na casa de banho porque o namorado a tinha deixado. No meio daquele caos adulto, pensei no Tiago à espera à porta da escola.
Quando finalmente consegui sair às quatro e meia, corri pelas ruas molhadas até à escola primária de Benfica. Vi-o sentado nos degraus, com a mochila azul ao lado e os olhos fixos no chão.
— Desculpa teres esperado — disse eu, ofegante.
Ele sorriu. Um sorriso pequeno, mas verdadeiro.
No caminho para casa, ele falou-me dos trabalhos manuais que tinha feito, das perguntas que tinha feito à professora sobre planetas e estrelas. Eu ouvi-o — realmente ouvi-o — pela primeira vez em muito tempo.
Chegámos a casa e fizemos juntos um bolo de iogurte. Rimos quando ele deixou cair farinha no chão; discutimos sobre se devíamos pôr canela ou não. Pela primeira vez em meses, senti-me mãe.
Mas a paz durou pouco.
No sábado seguinte, a minha mãe apareceu sem avisar. Entrou em casa como se ainda mandasse ali e começou logo a criticar:
— Esta casa está um caos! E tu? Olha para ti… nem pareces minha filha! O Tiago precisa de disciplina!
Senti o sangue ferver-me nas veias.
— Mãe, por favor… — tentei dizer.
— Não me respondas! Se continuas assim, esse miúdo vai crescer sem rumo! Olha para o teu irmão…
O meu irmão Rui era o exemplo perfeito do fracasso familiar: desempregado há anos, vivia com ela e passava os dias entre cafés e apostas no Placard.
— Não compares o Tiago ao Rui! — gritei sem querer.
O Tiago apareceu à porta da sala com os olhos arregalados.
— Mãe…
A minha mãe olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Não sabes educar um filho! — atirou antes de sair porta fora.
Fiquei ali parada, com o coração aos saltos e as mãos a tremer. O Tiago aproximou-se devagar e abraçou-me pelas costas.
— Não faz mal, mãe… — sussurrou ele.
Chorei baixinho enquanto lhe fazia festas no cabelo.
Nessa noite não dormi. Pensei em tudo: nas palavras da minha mãe, no medo de falhar com o Tiago, na solidão dos meus dias. Senti-me esmagada pelo peso das expectativas — as dela, as da sociedade, as minhas próprias.
No domingo seguinte levei o Tiago ao Jardim da Estrela. Sentámo-nos num banco a ver os patos no lago.
— Mãe… achas que um dia vou ser como o pai? — perguntou ele de repente.
O coração apertou-se-me no peito.
— Não sei como vais ser quando fores grande, Tiago. Mas sei que quero estar aqui para te ajudar a descobrir quem és — respondi com honestidade pela primeira vez.
Ele sorriu e encostou-se ao meu ombro.
Nesse momento percebi: amar não é proteger dos erros ou das dores; é dar espaço para crescerem com eles. É ouvir sem julgar; é estar presente mesmo quando tudo parece desabar à nossa volta.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos de ouvir quem mais amamos por medo de enfrentar as nossas próprias falhas? E vocês? Também sentem esse medo de não serem suficientes para os vossos filhos?