Entre Silêncios e Gritos: O Meu Lugar na Vida da Minha Nora

— Não precisa de vir hoje, Dona Teresa. Eu arranjo maneira de levar as meninas à escola — disse-me Inês, com aquele tom polido mas frio que já se tornara habitual.

Fiquei ali, com o telefone ainda quente na mão, a olhar para a chávena de café meio vazia. O relógio da cozinha marcava 7h15. O silêncio da casa era pesado, quase sufocante. Desde que o meu filho, Miguel, casou com a Inês, senti-me sempre a mais. Não por falta de vontade minha, mas porque cada gesto meu parecia ser interpretado como invasão.

A Ruby tem seis anos e ainda está na pré-escola. A mais nova, Leonor, mal começou a falar e já vai para o infantário. Lembro-me do cheiro do cabelo delas quando as abraçava, das gargalhadas que enchiam a minha sala nos raros dias em que ficavam comigo. Mas esses dias foram-se tornando cada vez mais raros.

— Mãe, a Inês prefere organizar as coisas à maneira dela — dizia-me o Miguel, sempre a tentar apaziguar. — Não leves a mal.

Mas como não levar a mal? Eu só queria ajudar. Sempre fui mãe presente, trabalhei toda a vida numa fábrica de têxteis em Guimarães, mas nunca deixei faltar nada ao Miguel. Quando ele nasceu, o meu marido já tinha partido para França à procura de trabalho. Fui mãe e pai. E agora que podia finalmente dar colo às netas, sentia-me empurrada para fora.

Lembro-me do primeiro Natal depois do casamento deles. Fiz questão de preparar tudo: o bacalhau, as rabanadas, até o arroz doce com canela em forma de coração. Mas quando chegaram, Inês trouxe um tupperware com comida “mais saudável” para as meninas. Senti o coração apertar.

— Não faz mal, Dona Teresa — disse ela, sorrindo sem mostrar os dentes — Elas já estão habituadas à comida lá de casa.

Miguel olhou para mim de lado, como quem pede desculpa sem palavras. Engoli em seco e tentei sorrir.

Os anos passaram assim: eu a tentar aproximar-me e ela a erguer barreiras invisíveis. Quando oferecia boleia para a escola, ela agradecia mas recusava. Quando me oferecia para ficar com as meninas ao fim de semana, dizia que tinham atividades ou iam visitar os pais dela em Braga.

No fundo, sentia-me humilhada. Como se não fosse digna de confiança. Comecei a afastar-me também. Deixei de ligar todos os dias. Deixei de perguntar se precisavam de alguma coisa. O Miguel começou a vir sozinho visitar-me ao domingo à tarde, sempre com pressa de voltar.

Até que um dia recebi uma mensagem inesperada:

“Dona Teresa, será que pode ficar com as meninas amanhã? Tenho uma reunião importante e o Miguel está fora em trabalho.”

O coração bateu mais forte. Respondi logo que sim. Passei a noite quase sem dormir, ansiosa por ver as netas.

Quando chegaram, Ruby entrou primeiro, agarrada ao peluche preferido. Leonor vinha ao colo da mãe, meio ensonada.

— Portem-se bem com a avó — disse Inês, apressada — Volto às cinco.

Assim que a porta se fechou, Ruby olhou para mim:

— Avó, podemos fazer bolachas?

Senti as lágrimas ameaçarem cair. Fomos para a cozinha e pusemos mãos à obra. Leonor lambuzou-se toda com farinha e Ruby contou-me histórias da escola: da amiga Matilde que lhe roubou o lápis cor-de-rosa, da professora que canta desafinada.

Quando Inês voltou, encontrou-nos no sofá a ver desenhos animados e a comer bolachas ainda quentes.

— Espero que não tenham comido demasiado açúcar — disse ela, olhando para mim de soslaio.

— Só um bocadinho — respondi, tentando não soar defensiva.

Ela suspirou e pegou nas meninas sem dizer muito mais. Fiquei ali sozinha outra vez, com o cheiro das bolachas ainda no ar.

Os pedidos de ajuda tornaram-se mais frequentes nos meses seguintes. Sempre por necessidade, nunca por vontade. Eu aceitava sempre — como podia recusar? Mas cada vez sentia mais aquela distância fria entre mim e Inês.

Um dia, durante um jantar de família em casa deles (convite raro), ouvi Inês desabafar com uma amiga ao telefone na varanda:

— A mãe do Miguel nunca se envolve realmente… Parece que está sempre distante das meninas. Não sei se é falta de interesse ou quê…

Fiquei gelada. Como podia ela dizer aquilo? Eu sempre quis estar presente! Mas ela nunca deixou!

No caminho para casa, Miguel percebeu o meu silêncio.

— O que foi?

— Nada… Só estou cansada.

Mas dentro de mim fervilhava uma raiva antiga misturada com tristeza.

Na semana seguinte decidi confrontar Inês. Esperei até ela vir buscar as meninas e pedi-lhe para conversar um pouco.

— Inês, posso perguntar-lhe uma coisa? Porque é que sente que eu não estou envolvida na vida das meninas? Sempre tentei ajudar…

Ela ficou surpreendida pela minha frontalidade.

— Dona Teresa… Eu… Não sei… Às vezes sinto que não quer interferir ou talvez não queira impor-se…

— Não é isso! — interrompi — Sempre quis fazer parte! Mas sempre senti que não era bem-vinda…

Ela ficou calada por uns segundos.

— Talvez tenhamos começado com o pé errado… Eu cresci muito agarrada à minha mãe e tenho dificuldade em confiar noutras pessoas para cuidar das meninas… Não é nada pessoal consigo…

Senti um peso sair dos ombros mas também uma mágoa profunda por todos os anos perdidos.

— Eu só queria ser avó delas… Não quero substituir ninguém nem impor nada… Só quero estar presente.

Ela assentiu com um sorriso tímido.

Desde esse dia as coisas melhoraram um pouco. Comecei a ser convidada para festas de aniversário e reuniões da escola. Mas nunca foi fácil nem natural. A distância emocional manteve-se como uma sombra entre nós.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim? Quantas avós são mantidas à distância por inseguranças ou mal-entendidos? Será que algum dia vou sentir que pertenço verdadeiramente à vida das minhas netas?

E vocês? Já sentiram que o vosso lugar na família foi decidido por outros? O que fariam no meu lugar?