Entre Silêncios e Abraços: A Minha Vida com o Tiago
— Não percebo, mãe. Porque é que ninguém quer o Tiago? — perguntei, com a voz embargada, enquanto olhava para a fotografia daquele menino de olhos grandes e tristes no ecrã do computador.
A minha mãe suspirou do outro lado da linha. — Miguel, sabes como é este país. As pessoas ainda têm medo do que é diferente. E tu… tu já sabes que vais ter de lutar a dobrar.
Fechei os olhos, sentindo o peso das palavras dela. Tinha 38 anos, solteiro, gay assumido em Lisboa, e estava prestes a desafiar tudo o que era esperado de mim. Não era só por ser homem solteiro; era também por ser quem sou. Mas quando vi o Tiago naquele site de adoções difíceis, soube que não podia virar costas.
O relatório social era frio: “Menino de 6 anos, diagnóstico de autismo severo, abandonado pela mãe biológica no Hospital de Santa Maria à nascença. Rejeitado por três famílias adotivas devido a dificuldades de comunicação e crises comportamentais.” Mas eu só via um menino sozinho, à espera de alguém que não desistisse dele.
Na primeira visita ao lar, fui recebido por Dona Amélia, uma educadora já com cabelos brancos e olhos cansados. — O Tiago não fala muito — avisou-me. — E às vezes grita sem razão aparente. As outras crianças têm medo dele.
Quando entrei na sala, vi-o sentado num canto, a alinhar carrinhos de brincar com uma precisão quase obsessiva. Aproximei-me devagar.
— Olá, Tiago. Eu sou o Miguel.
Ele não respondeu. Nem olhou para mim. Mas continuei ali, sentado no chão ao lado dele, em silêncio. Depois de alguns minutos, empurrou um carrinho na minha direção. O meu coração disparou. Era pouco, mas era um começo.
As semanas seguintes foram feitas de pequenos avanços e grandes recuos. Houve dias em que o Tiago me ignorava completamente; outros em que chorava sem parar quando eu me ia embora. Mas nunca desisti.
A burocracia foi um inferno. Os assistentes sociais olhavam para mim com desconfiança.
— Tem a certeza que quer avançar? — perguntaram-me mais do que uma vez. — Sabe que vai ser difícil… E sendo solteiro…
O que não diziam em voz alta era o resto: “E sendo gay?”. Senti isso em cada olhar enviesado, em cada silêncio constrangedor nas reuniões.
A minha família também não ajudou muito no início.
— Miguel, tu já tens tantos problemas… Porque é que te vais meter nisto? — disse-me o meu irmão Rui num jantar de domingo.
— Porque ninguém mais quer — respondi-lhe, tentando conter as lágrimas. — E porque eu quero.
Quando finalmente me deram a guarda provisória do Tiago, senti-me a pessoa mais feliz e mais aterrorizada do mundo. Trouxe-o para casa num sábado chuvoso de novembro. Ele entrou no meu apartamento pequeno em Arroios e ficou parado à porta da sala, como se tivesse medo de pertencer ali.
Na primeira noite, acordou aos gritos às três da manhã. Corri ao quarto dele e encontrei-o enrolado na cama, a balançar-se para a frente e para trás.
— Está tudo bem, Tiago… Estou aqui… — sussurrei, sentando-me ao lado dele.
Demorou quase uma hora até acalmar. Quando finalmente adormeceu encostado ao meu ombro, percebi que aquela seria a nossa vida: noites longas, dias difíceis, mas também momentos de ternura inesperada.
Os meses seguintes foram uma montanha-russa. O Tiago tinha crises no supermercado, gritava quando ouvia barulhos altos na rua ou quando mudava a rotina. Os vizinhos começaram a comentar.
— O menino tem problemas? — perguntou-me Dona Lurdes do terceiro andar num tom demasiado alto para ser inocente.
— Tem autismo — respondi com firmeza. — E é o meu filho.
No trabalho também não foi fácil. Sou professor de História numa escola secundária e os colegas olhavam-me com pena ou desconfiança.
— Não tens medo que te seja demais? — perguntou-me a Teresa na sala dos professores.
— Tenho medo de falhar com ele — confessei-lhe num sussurro.
Houve dias em que pensei em desistir. Dias em que o Tiago me empurrou para longe ou destruiu brinquedos num acesso de raiva inexplicável. Dias em que me senti sozinho contra o mundo inteiro.
Mas depois havia aqueles pequenos milagres: o dia em que ele me abraçou pela primeira vez sem eu pedir; o dia em que disse “papá” com voz trémula; o dia em que desenhou dois bonecos de mãos dadas e me mostrou com um sorriso tímido.
A minha mãe acabou por se render ao neto improvável.
— Ele é especial… mas tu também és — disse-me um dia, enquanto via o Tiago alinhar peças de lego na mesa da cozinha.
O Rui demorou mais tempo. Só quando viu o sobrinho a rir às gargalhadas com um episódio dos “Patrulha Pata” é que baixou a guarda.
— Afinal… talvez sejas mesmo feito para isto — admitiu ele, batendo-me no ombro.
Mas nem tudo eram vitórias. Um dia fui chamado à escola primária onde inscrevi o Tiago porque uma mãe se recusava a deixar o filho brincar com ele no recreio.
— Não quero que o meu filho apanhe essas coisas — disse ela alto demais para ser ignorada.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Mas olhei para o Tiago e vi nos olhos dele uma tristeza antiga demais para uma criança tão pequena.
— O Tiago não é contagioso — respondi com voz firme. — Só precisa de amigos como qualquer outra criança.
A diretora apoiou-me, mas percebi ali que a luta pela aceitação seria diária e cansativa.
Com o tempo, aprendi a celebrar as pequenas conquistas: uma ida ao parque sem birras; um jantar em família sem lágrimas; um “gosto de ti” sussurrado antes de dormir.
Às vezes penso na mãe biológica do Tiago. O que terá sentido ao deixá-lo no hospital? Medo? Vergonha? Desespero? Nunca vou saber. Mas sei que ele merecia mais do que abandono e rejeição.
Hoje olho para nós dois — eu e ele sentados no sofá, ele encostado ao meu peito a ver desenhos animados — e percebo que somos uma família improvável mas real. Uma família feita de silêncios partilhados e abraços apertados nos dias maus.
Sei que ainda vamos ter muitos desafios pela frente. Sei que nunca serei um pai perfeito nem ele será uma criança “normal” aos olhos dos outros. Mas quem decide o que é normal?
Às vezes pergunto-me: quantas crianças como o Tiago continuam à espera de alguém que não desista delas? E quantos Miguéis continuam à espera da coragem para desafiar tudo pelo amor?