Entre o Silêncio e o Ruído: A Vida de Mariana Sob o Peso das Expectativas

— Mariana, já viste as notas deste semestre? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, fria como o mármore da bancada onde ela cortava cebolas. Eu estava sentada à mesa, com o olhar perdido na chávena de chá, tentando adivinhar se aquele seria o momento em que tudo desabaria.

— Vi, mãe. — respondi, sem levantar os olhos. O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer discussão. O meu pai folheava o jornal, mas eu sabia que estava atento a cada palavra, pronto para intervir se fosse preciso.

— E então? Achas que é suficiente para entrares em Medicina? — insistiu ela, agora com um tom mais agudo.

O meu coração batia tão forte que temi que ambos o ouvissem. Medicina. A palavra pairava sobre mim desde os meus doze anos, quando a minha avó ficou doente e todos decidiram que eu seria a salvação da família. Mas eu sonhava com outra coisa. Queria ser escritora. Queria perder-me nas palavras e encontrar-me nas histórias dos outros.

— Ainda não sei, mãe. Talvez não seja este ano… — arrisquei.

O meu pai pousou o jornal com força.

— Mariana, não temos dinheiro para andares a brincar aos cursos. Ou entras em Medicina ou vais trabalhar para o supermercado do tio Luís. — O tom dele era definitivo, como se a vida se resumisse a essas duas opções.

Senti uma lágrima ameaçar cair, mas engoli-a com o resto do chá frio. Não era só a pressão dos meus pais. Era também o olhar dos vizinhos, os comentários das tias ao domingo, as comparações constantes com a minha prima Inês, que já estava no terceiro ano de Direito em Lisboa.

Naquela noite, fechei-me no quarto e escrevi no meu diário:

“Será que algum dia vou ter coragem de ser quem sou? Ou vou passar a vida inteira a tentar corresponder às expectativas dos outros?”

Os dias seguintes foram um desfile de pequenas derrotas: a carta da faculdade a dizer que não tinha sido aceite em Medicina; o silêncio constrangedor à mesa de jantar; as mensagens da Inês cheias de emojis felizes e fotografias das festas em Lisboa. Senti-me cada vez mais pequena, como se estivesse a desaparecer dentro de mim mesma.

Uma tarde, enquanto ajudava a minha mãe a arrumar as compras, ela largou um saco de arroz no chão e desatou a chorar. Fiquei paralisada durante uns segundos antes de me ajoelhar ao lado dela.

— Desculpa, filha… Eu só queria que tivesses uma vida melhor do que a minha. — murmurou ela, entre soluços.

Foi nesse momento que percebi que o peso das expectativas não era só meu. A minha mãe também carregava os seus próprios sonhos desfeitos, as suas próprias frustrações. Talvez fosse por isso que ela insistia tanto comigo — queria ver em mim aquilo que nunca conseguiu para si.

Naquela noite, escrevi outra vez:

“Será possível quebrar este ciclo? Ou estamos todos condenados a viver os sonhos dos outros?”

Comecei a trabalhar no supermercado do tio Luís. Os dias eram longos e repetitivos: caixas a apitar, clientes impacientes, colegas cansados. Mas havia algo reconfortante naquela rotina — pela primeira vez em muito tempo, sentia que tinha algum controlo sobre a minha vida. E todas as noites, depois do jantar, escrevia. Pequenos contos sobre pessoas comuns, histórias inspiradas nos clientes que via todos os dias.

Um dia, uma senhora idosa deixou cair uma moeda no chão e eu ajudei-a a apanhá-la. Ela sorriu para mim e disse:

— Tens mãos de quem sabe cuidar dos outros.

Sorri-lhe de volta, mas por dentro senti uma pontada de dor. Era isso que todos esperavam de mim: que cuidasse dos outros, mesmo quando mal conseguia cuidar de mim própria.

O tempo foi passando e comecei a enviar os meus contos para concursos literários. Não contei nada à minha família — era o meu pequeno segredo, um espaço só meu onde podia respirar sem medo de desiludir ninguém.

Numa manhã chuvosa de outubro, recebi um email: tinha ganho o segundo prémio num concurso nacional de contos. O meu coração disparou e as lágrimas correram-me pelo rosto antes sequer de conseguir ler até ao fim. Pela primeira vez na vida, senti-me vista por alguém fora do círculo sufocante da minha família.

Quando contei à minha mãe, ela olhou para mim como se estivesse a ver-me pela primeira vez.

— És mesmo feliz a escrever? — perguntou ela, baixinho.

— Sou, mãe. Muito mais do que alguma vez seria noutro lugar qualquer.

Ela assentiu devagar e abraçou-me com força. Nesse abraço percebi que talvez fosse possível encontrar um meio-termo entre os sonhos dela e os meus.

O meu pai demorou mais tempo a aceitar. Durante meses evitou falar sobre o assunto e continuou a perguntar-me quando é que ia tentar novamente entrar em Medicina. Mas um dia entrou no meu quarto com um livro antigo nas mãos — um romance português que ele próprio tinha lido quando era jovem.

— Lê isto — disse ele, deixando-o na minha secretária. — Pode ser que te inspire.

Foi o gesto mais próximo de aceitação que alguma vez recebi dele.

Hoje continuo a trabalhar no supermercado durante o dia e a escrever à noite. Não sou médica nem advogada como a Inês, mas sou dona das minhas palavras e dos meus sonhos. E aprendi que às vezes é preciso dececionar quem amamos para podermos ser fiéis a nós próprios.

Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós vivem presos às expectativas dos outros? E quantos têm coragem de escolher o próprio caminho? Talvez nunca saiba as respostas certas — mas sei que não quero passar o resto da vida sem tentar.