Entre o Passado e o Futuro: O Meu Filho, o Meu Ex-marido e a Busca pela Paz
— Não vou deixar que o André se meta na vida do meu filho! — gritou o Rui, batendo com a mão na porta da sala, tão forte que os copos na prateleira tilintaram. O Miguel, sentado no tapete com os legos espalhados à volta, olhou para mim com aqueles olhos grandes, assustados. Senti o peito apertar-se, como se cada palavra do Rui fosse uma pedra a cair-me em cima.
— Rui, por favor… — tentei manter a voz calma, mas já tremia. — O Miguel precisa de estabilidade. Ele precisa de um pai presente, não de alguém que aparece quando lhe apetece.
Ele virou-se para mim, olhos vermelhos de raiva ou talvez de cansaço. — Eu sou o pai dele! Não vou deixar que outro homem ocupe o meu lugar. Mas também não vou levá-lo para minha casa. Não tenho condições agora. — E saiu, deixando a porta aberta atrás de si, como sempre fazia quando queria mostrar que tinha a última palavra.
Fiquei ali parada, a ouvir a chuva bater nos vidros e o silêncio pesado da casa. O Miguel voltou ao seu castelo de legos, mas eu sabia que aquela discussão não lhe passara ao lado. Desde o divórcio, há quase dois anos, as nossas vidas pareciam um campo de batalha onde nunca havia vencedores.
O Rui e eu conhecemo-nos na faculdade do Porto. Ele era divertido, espontâneo, apaixonado por música e futebol. Eu era mais reservada, mas deixei-me levar pelo seu entusiasmo. Casámos cedo demais, talvez por medo da solidão ou porque parecia ser o caminho certo. Quando o Miguel nasceu, pensei que tudo ia mudar para melhor. Mas as noites sem dormir e as discussões sobre dinheiro começaram a corroer o que restava do nosso amor.
O divórcio foi inevitável. O Rui ficou com o apartamento pequeno em Matosinhos; eu voltei para casa dos meus pais em Gaia até conseguir arrendar um T2 modesto. O Miguel ficou comigo, claro. O Rui prometeu que ia vê-lo todos os fins de semana, mas rapidamente as visitas passaram a ser quinzenais… depois mensais… até que começaram as desculpas: trabalho, viagens, cansaço.
Quando conheci o André no trabalho — ele era novo na empresa — senti pela primeira vez em anos que alguém me via realmente. Era gentil com o Miguel, paciente comigo. Nunca tentou substituir o Rui; limitava-se a estar presente. Mas bastou o Rui saber da existência dele para tudo piorar.
— Não quero saber desse tipo cá em casa! — disse-me ao telefone uma noite, quando lhe contei que o André ia jantar connosco. — Se ele se mete na vida do Miguel, vamos ter problemas.
Tentei argumentar: — O Miguel gosta dele. Precisa de referências masculinas. Tu não apareces…
— Não me provoques! — interrompeu-me. — O meu filho não vai chamar pai a outro homem!
Desligou-me na cara. Fiquei ali sentada no escuro da sala, a sentir-me culpada por tentar ser feliz outra vez.
Os meus pais também não ajudavam. A minha mãe dizia sempre: — Filha, devias tentar falar com o Rui outra vez. O Miguel precisa do pai dele.
O meu pai era mais duro: — Esse André é boa pessoa? Não te metas noutra confusão.
Senti-me sozinha no meio de todos. O Miguel começou a ter pesadelos à noite; acordava a chorar e pedia para dormir comigo. Uma vez perguntou-me:
— Mãe, porque é que o pai não vem buscar-me? Ele não gosta de mim?
Apertei-o nos braços e menti-lhe: — Claro que gosta, filho. Só está muito ocupado.
Mas por dentro sentia-me uma fraude. Como podia protegê-lo daquela rejeição? Como podia explicar-lhe que às vezes os adultos são egoístas e magoam quem mais amam?
O André tentava ajudar:
— Queres que fale com o Rui? Talvez se conversarmos…
— Não vai adiantar — respondi-lhe. — Ele só quer controlar tudo. Não quer saber do Miguel, mas também não me deixa seguir em frente.
As semanas passaram entre silêncios e discussões ao telefone com o Rui. O Miguel começou a fechar-se cada vez mais; já não queria ir ao parque nem brincar com os amigos da escola. Um dia, a professora chamou-me:
— O Miguel anda muito calado. Desenha sempre famílias partidas… Está tudo bem em casa?
Chorei no carro depois dessa conversa. Senti-me a pior mãe do mundo.
Numa noite fria de dezembro, depois de mais uma discussão com o Rui ao telefone — ele recusava-se a passar o Natal connosco ou sequer ver o Miguel — sentei-me à mesa da cozinha enquanto o Miguel dormia e escrevi-lhe uma carta:
“Rui,
O Miguel precisa de ti. Não como uma sombra ou uma ameaça ao longe, mas como um pai verdadeiro. Se não podes ou não queres assumir esse papel, deixa-me construir uma família diferente para ele. Não me faças escolher entre ser feliz e proteger o nosso filho.
Por favor, pensa no Miguel antes de pensares em ti próprio.
Ana”
Nunca tive coragem de lhe entregar essa carta.
No dia seguinte, fui buscar o Miguel à escola e ele trazia um desenho na mão: três figuras de mãos dadas — eu, ele e o André. Olhei para ele e vi esperança nos seus olhos.
— Este é o nosso Natal? — perguntou-me.
Sorri-lhe com lágrimas nos olhos: — Sim, filho. Este é o nosso Natal.
Nesse Natal, fizemos rabanadas juntos e cantámos músicas antigas enquanto chovia lá fora. O André trouxe um presente simples para o Miguel: um livro de aventuras. Pela primeira vez em muito tempo senti paz.
O Rui ligou no dia 26:
— O Miguel está bem?
— Está feliz — respondi-lhe.
Ele ficou em silêncio do outro lado da linha.
— Ana… desculpa…
Não disse mais nada.
Hoje olho para trás e vejo quanto tempo perdi à espera que alguém mudasse por mim ou pelo meu filho. Aprendi que às vezes temos de aceitar que nem todos querem ou conseguem ser pais como deviam ser. E que temos direito a recomeçar sem culpa.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mães vivem presas entre um passado que não volta e um futuro que parece proibido? Quantas vezes deixamos de ser felizes por medo do julgamento dos outros? Se pudesse voltar atrás, teria sido mais corajosa desde o início… E vocês? Já sentiram este medo de recomeçar?