Entre o Amor e o Medo: O Meu Lugar na Vida da Leonor
“Tu não tens condições para criar uma criança, Mariana. Devias pensar em dá-la para adoção. É melhor para todos.” As palavras do meu irmão Miguel ecoavam na sala fria do hospital, misturando-se com o cheiro a desinfetante e o som distante de um monitor cardíaco. Eu, deitada na cama, ainda com o corpo dorido da cesariana de emergência, sentia-me mais pequena do que nunca. A minha mãe, Dona Teresa, olhava para mim com olhos vermelhos de tanto chorar, mas não dizia nada. O silêncio dela magoava-me mais do que as palavras duras do Miguel.
A gravidez tinha sido uma surpresa — para mim e para todos. Tinha 27 anos, um emprego precário numa loja de roupa no centro de Lisboa e vivia num pequeno T1 em Chelas. O pai da Leonor, o Rui, desapareceu assim que soube da notícia. “Não estou preparado para isto”, disse-me ele numa noite chuvosa de novembro, antes de fechar a porta atrás de si. Fiquei sozinha com o teste positivo na mão e um medo que me gelava os ossos.
Durante meses tentei convencer-me de que ia conseguir. A minha tia Lurdes ajudava-me com comida e roupa de bebé, e a minha melhor amiga, Inês, fazia-me companhia nas consultas. Mas a família estava dividida. O Miguel, sempre pragmático, dizia que eu era irresponsável. A minha mãe oscilava entre o apoio silencioso e o desespero. “Filha, tu sabes que eu te amo, mas criar uma criança sozinha… não é fácil.”
A gravidez correu bem até ao último mês. Os médicos diziam que estava tudo ótimo, mas na madrugada do dia 14 de março acordei com dores insuportáveis. Fui levada às pressas para o Hospital de Santa Maria. Lembro-me do olhar preocupado da enfermeira quando me viu chegar. “Vamos ter de fazer uma cesariana urgente”, disse o médico. Não tive tempo para pensar — só senti medo. Medo de morrer, medo de perder a minha filha, medo de falhar.
Quando acordei da anestesia, a primeira coisa que perguntei foi pela Leonor. “Está nos cuidados intensivos”, disseram-me. O coração apertou-se-me no peito. Durante dois dias não a pude ver. Só via as caras fechadas dos médicos e os olhares preocupados da minha mãe e do Miguel.
No terceiro dia deixaram-me entrar na neonatologia. A Leonor era tão pequenina, ligada a tubos e máquinas. Senti-me esmagada pela culpa e pela impotência. “Se calhar o Miguel tem razão”, pensei. “E se eu não conseguir?”
O Miguel apareceu nesse dia com a papelada de adoção na mão. “Pensa bem, Mariana. Não tens estabilidade financeira, não tens apoio do pai da criança… Isto não é vida para ti nem para ela.”
Chorei como nunca tinha chorado antes. A Inês apareceu nessa noite com um saco de fraldas e um abraço apertado. “Tu és mais forte do que pensas”, sussurrou-me ao ouvido.
Os dias seguintes foram um teste à minha resistência. A Leonor foi melhorando devagarinho. Eu passava horas ao lado da incubadora, a cantar-lhe baixinho canções que a minha mãe me cantava em pequena: “Dorme, dorme, meu menino…”. A cada batida do coração dela sentia uma esperança tímida a crescer dentro de mim.
A minha mãe começou a trazer sopa caseira ao hospital e sentava-se comigo em silêncio. Um dia, segurou-me na mão e disse: “Eu tive medo quando soube que estava grávida de ti. Mas tu deste sentido à minha vida.”
O Miguel continuava irredutível. “Isto é egoísmo teu”, atirou num dos raros momentos em que ficámos sozinhos no corredor do hospital. “Vais arrastar essa criança para uma vida miserável.”
Eu queria gritar-lhe que ele não sabia nada do que era ser mãe, mas limitei-me a olhar para o chão.
Quando finalmente pude levar a Leonor para casa, senti um misto de alegria e terror. O apartamento parecia ainda mais pequeno com o berço improvisado na sala e os sacos de fraldas empilhados junto à porta. As noites eram longas — Leonor chorava muito e eu chorava com ela, exausta e perdida.
A família afastou-se ainda mais. O Miguel deixou de me falar durante semanas. A minha mãe vinha todos os dias ajudar-me a dar banho à bebé e preparar o jantar, mas eu sentia o peso do julgamento nos olhos dela.
Uma tarde, enquanto embalava a Leonor junto à janela, ouvi as vizinhas a comentar no pátio:
— Dizem que ela está sozinha com a miúda…
— Pois, hoje em dia ninguém quer saber das responsabilidades…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que toda a gente achava que sabia o que era melhor para nós?
Os meses passaram devagarinho. Voltei ao trabalho quando a Leonor fez cinco meses — deixava-a na creche municipal e corria para apanhar o autocarro 735 todas as manhãs. Havia dias em que achava que ia desmaiar de cansaço.
Um dia, cheguei atrasada ao trabalho e o gerente chamou-me ao gabinete:
— Mariana, tens de decidir se queres trabalhar aqui ou ser mãe a tempo inteiro… Não posso continuar a cobrir os teus atrasos.
Saí dali humilhada e com medo de perder o emprego. Liguei à minha mãe a chorar:
— Não consigo fazer tudo sozinha!
— Ninguém consegue — respondeu ela baixinho — mas tu estás a fazer o melhor que podes.
Nessa noite sentei-me no sofá com a Leonor ao colo e olhei-a nos olhos pela primeira vez sem medo. Ela sorriu-me — um sorriso pequenino mas cheio de luz.
Comecei a procurar alternativas: pedi ajuda à assistente social da junta de freguesia; inscrevi-me num curso noturno de costura; aceitei trabalhos extra a fazer arranjos de roupa para as vizinhas.
Aos poucos fui reconstruindo a minha vida — não como tinha imaginado, mas como era possível naquele momento.
O Miguel apareceu no meu aniversário com um presente para a Leonor — um ursinho de peluche azul.
— Desculpa — murmurou ele — fui demasiado duro contigo.
Abracei-o sem dizer nada. Havia feridas difíceis de sarar, mas naquele momento senti que talvez houvesse esperança para nós.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela Mariana assustada no hospital. Ainda tenho medo — todos os dias — mas aprendi que ser mãe não é ter todas as respostas; é amar mesmo quando tudo parece impossível.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem esta solidão em silêncio? Quantas são julgadas por tentar dar o melhor aos seus filhos? Será que alguma vez estaremos verdadeiramente preparadas para ser mães? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…