Entre o Amor e o Desamparo: Quando a Minha Mãe Recusou Tomar Conta dos Netos
— Mãe, por favor, só preciso que fiques com eles até às seis. O turno hoje é mais longo — implorei, sentindo o nó na garganta apertar enquanto olhava para os olhos frios da minha mãe.
Ela suspirou, desviando o olhar para a televisão. — Filha, já te disse que não posso. Tenho a minha vida. Não sou obrigada a criar os teus filhos.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Os meus três filhos brincavam na sala ao lado, alheios à tensão que pairava no ar. O mais novo, o Tomás, ainda nem tinha feito um ano quando o Pedro morreu. Lembro-me do funeral como se fosse ontem: o cheiro das flores murchas, o murmúrio das condolências vazias, o peso insuportável do caixão. Desde então, tudo mudou.
A nossa casa — pequena mas nossa — tornou-se um campo de batalha entre contas por pagar e brinquedos espalhados pelo chão. O subsídio de viuvez mal dava para cobrir as despesas básicas. O meu irmão, o Rui, ajudou-nos nos primeiros meses. Ele e a Ana trouxeram sacos de compras, pagaram a renda quando eu já não tinha como. Mas ele também tem dois filhos pequenos e um emprego instável. Não podia pedir-lhe mais.
Quando finalmente arranjei trabalho num supermercado, achei que as coisas iam melhorar. Mas os horários eram rotativos e os salários miseráveis. A creche pública só aceitava o Tomás meio-dia, e as listas de espera para prolongamento eram intermináveis. Liguei para a minha mãe tantas vezes que perdi a conta.
— Mãe, eu não estou a pedir-te para criares os meus filhos. Só preciso de ajuda até conseguir organizar-me — tentei argumentar mais uma vez.
Ela levantou-se do sofá e foi buscar um copo de água à cozinha. — Tu escolheste ter três filhos. Agora tens de te desenrascar. Eu já criei os meus.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era justo. Eu não tinha escolhido ficar sozinha. O Pedro era tudo para mim. Trabalhava na construção civil, fazia horas extra para podermos pagar as férias no Algarve uma vez por ano. Depois daquele acidente no estaleiro, fiquei sem chão.
À noite, quando finalmente conseguia deitar-me, ficava horas acordada a pensar em como tudo podia ter sido diferente. Oiço ainda o choro do Tomás no berço improvisado ao lado da minha cama. A Inês e o Miguel dormem juntos porque não há espaço para mais camas.
No trabalho, sou conhecida como “a viúva”. As colegas falam baixo quando passo. A chefe olha-me com pena quando peço para sair mais cedo porque um dos miúdos ficou doente. Já perdi dois dias de salário este mês por causa disso.
Um dia, ao sair do supermercado, encontrei a minha mãe à porta da escola da Inês. Fiquei surpreendida.
— Vieste buscar a Inês? — perguntei, esperançosa.
Ela abanou a cabeça. — Vim buscar o teu irmão mais novo. A professora pediu-me para vir porque ele está doente.
Senti uma pontada de inveja e mágoa. Porque é que ela conseguia ajudar o Rui e não a mim? Será que fiz alguma coisa errada? Será que ela nunca gostou verdadeiramente de mim?
À noite, liguei-lhe outra vez. Desta vez não pedi nada. Só queria ouvir a voz dela.
— Mãe, está tudo bem?
Ela respondeu secamente: — Está tudo como sempre.
Desliguei antes que ela percebesse que eu estava a chorar.
Os dias foram passando e fui-me habituando à rotina exaustiva: acordar às seis da manhã, preparar pequenos-almoços apressados, vestir três crianças sonolentas, correr para deixar o Tomás na creche e os outros dois na escola primária antes de apanhar o autocarro para o supermercado.
Às vezes penso em desistir. Mas depois olho para eles — tão pequenos e tão dependentes de mim — e sei que não posso.
A Inês começou a ter problemas na escola. A professora chamou-me para uma reunião.
— A Inês anda muito distraída, parece triste — disse-me ela com um olhar compreensivo.
Expliquei-lhe tudo: o pai que morreu, as dificuldades em casa, a ausência da avó.
— Talvez fosse bom procurar apoio psicológico — sugeriu ela.
Mas como? Se mal tenho dinheiro para comida?
Numa noite particularmente difícil, depois de um turno duplo e com febre alta, sentei-me no chão da cozinha e chorei baixinho para não acordar os miúdos. Senti-me tão sozinha como nunca antes na vida.
Foi então que recebi uma mensagem do Rui:
— Precisas de alguma coisa? A Ana pode ficar com os miúdos amanhã à tarde se quiseres descansar.
Agradeci-lhe com o coração apertado pela gratidão e pela vergonha de precisar sempre dos outros.
No domingo seguinte, decidi enfrentar a minha mãe uma última vez. Levei os miúdos até casa dela sem avisar.
— Mãe, precisamos mesmo de ti — disse-lhe à porta, com os olhos vermelhos do cansaço.
Ela olhou para mim durante longos segundos antes de responder:
— Não posso ser tua bengala para sempre. Tens de aprender a viver sozinha.
A Inês agarrou-se à minha perna e começou a chorar também.
Nesse momento percebi que nunca teria da minha mãe aquilo que tanto precisava: apoio incondicional.
Voltei para casa com os miúdos em silêncio no carro. Senti-me derrotada mas também estranhamente livre. Se não podia contar com ela, teria de encontrar força dentro de mim mesma.
Comecei a procurar grupos de apoio online para mães solteiras em Portugal. Conheci outras mulheres com histórias parecidas à minha. Partilhámos conselhos sobre creches baratas, ajudas sociais e truques para poupar nas compras do supermercado.
Aos poucos fui reconstruindo a nossa vida à minha maneira. A Inês melhorou na escola depois de começar a desenhar num caderno especial que lhe dei. O Miguel aprendeu a fazer torradas sozinho para me ajudar nas manhãs apressadas. O Tomás começou a andar e cada passo dele era uma vitória nossa.
Ainda sinto falta do Pedro todos os dias. Ainda me dói ver as outras avós a buscar os netos à escola enquanto os meus ficam sempre à espera da mãe cansada que chega atrasada.
Mas aprendi que família nem sempre é quem nos deu à luz ou quem partilha o nosso sangue. Às vezes são os amigos que nos ouvem sem julgar ou as mães desconhecidas do grupo online que nos mandam mensagens às três da manhã quando não conseguimos dormir.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que algum dia vou conseguir perdoar a minha mãe? Ou será que há coisas que nunca se esquecem?
E vocês? Já sentiram este vazio dentro da própria família? Como encontraram forças para continuar?