Entre Mãe e Filha: Uma História de Silêncios e Gritos

— Não me olhes assim, Mariana! — a voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu tinha acabado de dizer que não queria seguir Direito, que sonhava estudar Belas-Artes em Lisboa. O cheiro do café queimado misturava-se ao cheiro acre da tensão. — Tu não percebes o que é melhor para ti! — insistiu ela, com os olhos semicerrados, como se cada palavra fosse uma sentença.

A minha infância foi feita de silêncios e olhares de soslaio. O meu pai, António, era um homem ausente, sempre a trabalhar no escritório de contabilidade do outro lado da cidade. A minha mãe, Teresa, era a rainha da casa: tudo girava à sua volta, desde o que se comia ao que se dizia. Eu era a filha única, a esperança dela, o projeto dela. Mas nunca fui o que ela queria.

Lembro-me de ter seis anos e de me esconder atrás do sofá, a desenhar no caderno enquanto ela gritava ao telefone com a minha avó. — A Mariana não pode ser assim tão distraída! — dizia ela. — Tem de aprender a ser como as outras meninas! — Eu desenhava princesas com cabelos azuis e castelos flutuantes, mas quando ela encontrava os meus desenhos, rasgava-os em pedaços pequenos. — Isto não é arte, Mariana. Isto é perder tempo.

Na escola primária, invejava as colegas cujas mães apareciam nas festas e batiam palmas aos seus teatros. A minha mãe nunca foi. Dizia que não tinha tempo para “essas coisas”. Quando eu chegava a casa com um diploma de mérito ou uma medalha de atletismo, ela olhava de relance e perguntava: — E as notas a Matemática? — Nunca era suficiente.

A adolescência trouxe mais distância. Comecei a escrever poemas escondida no sótão, entre caixas de recordações do meu avô. Escrevia sobre liberdade, sobre voar para longe daquela casa onde o ar parecia sempre pesado. Uma vez, o meu pai encontrou um dos meus poemas e sorriu triste. — Tens jeito, filha — murmurou ele, mas nunca teve coragem de me defender perante a minha mãe.

O conflito explodiu no 12º ano. Tinha acabado de receber a carta de aceitação da Faculdade de Belas-Artes. O meu coração batia descompassado quando mostrei a carta à minha mãe. Ela leu-a em silêncio e depois atirou-a para cima da mesa. — Não vais para Lisboa estudar disparates. Vais inscrever-te em Direito aqui na cidade, como combinámos.

— Mas mãe, eu não quero ser advogada! Quero ser artista! — gritei, sentindo as lágrimas a arderem-me nos olhos.

— Artista? Isso não é profissão! Vais acabar a pedir esmola na rua! — O rosto dela estava vermelho de raiva.

O meu pai entrou na cozinha nesse momento e tentou acalmar-nos. — Teresa, deixa a Mariana escolher… — Mas ela cortou-lhe a palavra com um gesto brusco.

— Não me desafies, António! Esta casa tem regras!

Nessa noite, fechei-me no quarto e chorei até adormecer. Senti-me sozinha como nunca antes. No dia seguinte, tomei uma decisão: ia fugir de casa.

Arrumei algumas roupas numa mochila, juntei os meus cadernos de desenhos e poemas e apanhei o comboio das seis da manhã para Lisboa. Lembro-me do frio da estação vazia e do medo a apertar-me o peito. Mas também me lembro da sensação de liberdade quando o comboio começou a andar.

Os primeiros meses em Lisboa foram duros. Dormi em quartos alugados por outros estudantes, trabalhei num café para pagar as contas e estudava à noite. Havia dias em que pensava em desistir. Sentia falta do cheiro do pão quente da padaria da minha rua, das árvores do jardim onde brincava em pequena. Mas nunca senti falta dos gritos da minha mãe.

Ela ligava-me todos os dias no início. Deixava mensagens frias: — Quando é que voltas para casa? Estás a desperdiçar a tua vida! — Eu ouvia as mensagens e chorava em silêncio.

O meu pai ligava às escondidas: — Mariana, estou orgulhoso de ti… mas não digas à tua mãe que falei contigo.

A faculdade tornou-se o meu refúgio. Os professores incentivavam-me, os colegas tornaram-se família improvisada. Pela primeira vez na vida sentia-me vista e ouvida.

No segundo ano do curso, recebi uma notícia que me abalou: o meu pai tinha tido um enfarte. Voltei à cidade natal para o funeral. A minha mãe estava irreconhecível: magra, os olhos fundos, o rosto fechado numa máscara de dor e raiva.

No velório, ela aproximou-se de mim e sussurrou: — Isto é culpa tua. Se tivesses ficado em casa, nada disto tinha acontecido.

Senti um nó na garganta tão apertado que quase não conseguia respirar. Quis gritar-lhe que não era verdade, que ela não podia culpar-me pela morte do meu pai. Mas calei-me. O silêncio era mais seguro.

Depois do funeral, tentei falar com ela:

— Mãe… eu também perdi o pai…

Ela virou-me as costas sem dizer uma palavra.

Voltei para Lisboa com um peso novo no peito: a culpa misturada com raiva e tristeza. Durante meses sonhei com o rosto do meu pai e com os olhos frios da minha mãe.

Terminei o curso com distinção e consegui um estágio numa galeria de arte contemporânea. A minha primeira exposição individual foi um sucesso inesperado: vendi todos os quadros na noite de inauguração.

No meio da multidão que me felicitava, vi uma figura parada à porta: era a minha mãe. O coração disparou-me no peito.

Ela aproximou-se devagar, olhou para os quadros e depois para mim:

— Não percebo nada disto… mas parece que as pessoas gostam.

Fiquei sem saber o que dizer. Quis abraçá-la, pedir-lhe desculpa por tudo o que aconteceu entre nós. Mas ela limitou-se a dar-me um beijo frio na face e saiu sem olhar para trás.

Hoje tenho trinta anos e continuo sem saber se algum dia serei aceite pela minha mãe tal como sou. Tenho uma filha pequena, a Matilde, e prometo todos os dias que nunca lhe vou negar o direito de ser quem quiser ser.

Às vezes pergunto-me: será possível amar verdadeiramente uma mãe que nunca nos aceitou? Ou será que passamos a vida inteira à procura desse amor impossível?

E vocês? Já sentiram este vazio dentro da vossa própria família?