Entre Gritos e Silêncios: Fugi de Casa para Sobreviver

— Tu és mesmo uma ingrata, Mariana! — O grito da minha mãe ecoou pela casa, atravessando as paredes finas do nosso apartamento em Almada. — O teu irmão está ali a morrer e tu só pensas em ti! Não tens vergonha?

Fiquei parada no corredor, as mãos a tremerem enquanto segurava a mochila. O meu irmão, o Diogo, tossia no quarto ao lado, cada vez mais fraco desde que a leucemia lhe roubou a energia. Eu amava-o, claro que amava, mas sentia-me a afogar naquele ambiente de raiva e exigências. A minha mãe nunca me olhava nos olhos sem ser para me acusar de alguma coisa.

— Mãe, eu só queria estudar um pouco… Tenho exame amanhã… — tentei justificar-me, mas ela já não me ouvia. O olhar dela era duro, quase vazio de tudo menos mágoa e fúria.

— Exame? E o exame da vida, Mariana? Vais reprovar! — atirou ela, batendo com a porta do quarto do Diogo.

Naquela noite, não dormi. Ouvia os passos dela pelo corredor, as mensagens de voz que enviava para as tias a dizer que eu era uma filha desnaturada. Ouvia o Diogo a chorar baixinho, e sentia-me dividida entre o amor por ele e o desejo de desaparecer dali.

No dia seguinte, depois do exame final do secundário, voltei para casa e encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com o telemóvel na mão. Mal entrei, ela começou:

— Já viste o estado em que está o teu irmão? E tu aí, toda arranjadinha para ires sair com as tuas amigas! — A voz dela era um chicote.

— Não vou sair, mãe. Só vim buscar umas coisas… — murmurei.

Ela bufou.

— Pois claro. Vais fugir como sempre. Deixas tudo para mim! Sabes o que és? Uma egoísta! — E começou a chorar alto, como fazia sempre que queria que eu me sentisse culpada.

Foi nesse momento que decidi. Esperei que ela saísse para ir buscar medicamentos ao centro de saúde e arrumei tudo o que consegui numa mala pequena: uns livros, roupa, o velho casaco do meu pai (que nos deixou quando eu tinha dez anos). Saí sem olhar para trás.

Fui para casa da minha amiga Inês, em Lisboa. Os pais dela receberam-me com um sorriso triste; sabiam da minha situação há anos. Dormi no sofá durante semanas, enquanto procurava trabalho e tentava inscrever-me na universidade. Cada noite era uma mistura de alívio e culpa. Sentia-me livre pela primeira vez… mas também traidora.

As mensagens começaram logo na primeira noite. Primeiro vieram os insultos:

“És uma cobra! Espero que sofras como o teu irmão está a sofrer!”

Depois vieram as ameaças:

“Se não voltares já para casa, nunca mais te quero ver!”

Bloqueei o número dela. No dia seguinte, recebi mensagens de um número desconhecido:

“A tua mãe está mal por tua causa. És pior que lixo.”

Bloqueei esse também. Mas ela arranjava sempre outro número. As palavras eram diferentes, mas o veneno era sempre o mesmo. Cheguei a receber mensagens em que ela me desejava doenças horríveis, ou dizia que eu devia morrer em vez do Diogo.

Chorei muito nessas noites. Sentia-me sozinha no mundo. A Inês tentava animar-me:

— Mariana, tu não tens culpa. Tu fizeste tudo o que podias pelo Diogo…

Mas eu não conseguia acreditar nisso. Lembrava-me das vezes em que fiquei acordada com ele durante a noite, das idas ao hospital, das horas a estudar no corredor enquanto ele dormia ao meu lado. Mas nada disso parecia importar à minha mãe.

O Diogo mandou-me uma mensagem um dia:

“Mana, desculpa por tudo. Sei que não é culpa tua. Amo-te.”

Respondi-lhe entre lágrimas:

“Amo-te também. Estou aqui para ti sempre.”

Mas ele estava cada vez mais fraco. Um mês depois da minha fuga, recebi uma chamada do hospital: o Diogo tinha tido uma recaída grave.

Voltei a correr para Almada. No hospital, encontrei a minha mãe sentada ao lado dele, os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Vieste finalmente mostrar a tua cara? — sussurrou ela quando me viu.

Ignorei-a e sentei-me ao lado do Diogo. Ele sorriu-me com dificuldade.

— Não fiques triste por mim… — murmurou ele.

Fiquei ali horas com ele, até adormecer encostada à cama. Quando acordei, a minha mãe estava a discutir com uma enfermeira no corredor:

— Ela não devia estar aqui! Ela abandonou-nos!

A enfermeira olhou para mim com pena.

— Dona Teresa, a Mariana tem direito de estar com o irmão.

A minha mãe virou-se para mim com ódio nos olhos:

— Tu mataste-o por dentro quando foste embora! Nunca te vou perdoar!

Senti um nó na garganta tão forte que quase não conseguia respirar. Saí dali antes que começasse a gritar também.

O Diogo morreu duas semanas depois. No funeral, a minha mãe recusou-se a olhar para mim. Disse à família toda que eu era responsável pela morte dele porque não tinha ficado em casa para ajudar.

Fui viver sozinha para um quarto alugado em Lisboa. Trabalhei num café durante o dia e estudei à noite. A culpa era uma sombra constante; às vezes acordava a meio da noite com o som dos gritos da minha mãe ainda nos ouvidos.

Recebi mais mensagens dela ao longo dos meses: insultos, ameaças, até pedidos de dinheiro quando ficou desempregada. Nunca respondeu às minhas tentativas de reconciliação; só sabia atacar.

Anos depois, ainda me pergunto se fiz bem em fugir. Sei que precisava de salvar-me antes que me perdesse completamente naquele ambiente tóxico… mas será que podia ter feito mais pelo Diogo? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me?

Às vezes olho para trás e pergunto: quantos de nós vivem presos à culpa dos outros? Quantos fogem para sobreviver… e acabam por se perder no caminho? E vocês… já sentiram esta culpa sufocante? Como se sobrevive ao peso do passado?