Dói Tanto: Quando Percebi Que Era Apenas Um Recurso Para os Meus Pais

— Miguel, podes transferir mais cinquenta euros para a conta? O supermercado está cada vez mais caro — a voz da minha mãe ecoou pelo telefone, carregada de urgência e um tom quase acusatório.

Fechei os olhos por um instante, sentindo o peso daquela frase. Era a terceira vez naquele mês. O meu salário mal tinha entrado e já estava a ser repartido, como sempre. Senti o nó na garganta apertar, mas respondi, como sempre:

— Sim, mãe. Eu faço isso agora.

Desliguei o telefone e fiquei a olhar para o teto do meu pequeno quarto em Lisboa. Tinha 28 anos, vivia sozinho há três, mas nunca me sentira verdadeiramente livre. Desde que comecei a trabalhar como técnico de informática, os meus pais passaram a ver-me como uma espécie de caixa multibanco ambulante. No início, achei normal ajudar — afinal, eles tinham-me dado tudo. Mas com o tempo, comecei a perceber que havia algo errado naquela dinâmica.

Lembro-me bem de quando tudo começou. Tinha acabado de arranjar o meu primeiro emprego e, orgulhoso, contei-lhes durante o jantar de domingo. O meu pai, Joaquim, olhou-me com aquele sorriso cansado e disse:

— Finalmente alguém aqui vai trazer dinheiro para casa.

Na altura ri-me, achando que era uma piada. Mas não era. Na semana seguinte, pediram-me para pagar a conta da luz. Depois foi o gás. Depois as compras do mês. E assim foi crescendo.

A minha irmã mais nova, Catarina, ainda estudava e raramente era chamada à conversa quando o assunto era dinheiro. Sentia-me sozinho naquela responsabilidade. Por vezes, tentava falar com ela sobre isso:

— Catarina, já reparaste que os pais só me pedem dinheiro a mim?

Ela encolhia os ombros:

— És tu que trabalhas, Miguel. Eu ainda estou na faculdade.

Mas não era só isso. Havia uma diferença no tratamento. Quando eu recusava algum pedido — porque precisava de pagar a renda ou porque queria guardar algum dinheiro para mim — a minha mãe fazia-se de vítima:

— Depois não digas que não te demos nada na vida! Só te pedimos um bocadinho de ajuda…

E o meu pai ficava calado, mas lançava-me aquele olhar frio, como se eu fosse ingrato.

O pior foi quando perdi o emprego durante a pandemia. Liguei-lhes, aflito:

— Mãe, fui despedido. Não sei como vou pagar as minhas contas este mês.

Ela suspirou do outro lado:

— Pois… E nós também estamos aflitos. Vais ter de te desenrascar, Miguel.

Senti-me traído. Durante anos fui o suporte deles e, no momento em que precisei, virei um peso morto.

Foram meses difíceis. Procurei trabalho em todo o lado: lojas, cafés, até limpezas. A Catarina arranjou um part-time num call center e começou finalmente a contribuir um pouco para casa dos pais. Mas mesmo assim, as chamadas continuavam:

— Miguel, precisamos mesmo daquele dinheiro para pagar o IMI…

Comecei a evitar atender o telefone. Sentia vergonha de não poder ajudar e raiva por sentir que só valia pelo dinheiro que podia dar.

Quando finalmente arranjei outro emprego — pior pago e mais longe de casa — decidi impor limites.

— Mãe, este mês não posso ajudar. Tenho despesas minhas para pagar.

O silêncio do outro lado foi ensurdecedor. Depois veio a explosão:

— Então é assim? Depois de tudo o que fizemos por ti? Sabes lá tu o que custa criar um filho!

Chorei nessa noite como há muito não chorava. Senti-me egoísta e ao mesmo tempo injustiçado. Comecei a questionar tudo: será que algum dia fui amado por quem sou ou apenas pelo que posso dar?

Os jantares de domingo tornaram-se tensos. O meu pai mal falava comigo; a minha mãe lançava indiretas sobre filhos ingratos e sacrifícios não reconhecidos. Até a Catarina começou a afastar-se — talvez por medo de ser ela a próxima fonte de rendimento.

Um dia, ao chegar a casa dos meus pais para mais um desses jantares, ouvi-os a discutir na cozinha:

— O Miguel já não ajuda como antes! — dizia a minha mãe.

— Ele tem a vida dele… — respondeu o meu pai, num raro momento de compreensão.

— Vida dele? E nós? Quem é que pensa em nós?

Entrei na cozinha e eles calaram-se imediatamente. Senti-me um estranho na minha própria família.

Tentei conversar abertamente:

— Mãe, pai… Eu ajudo-vos porque quero, mas preciso também de cuidar de mim. Não posso ser sempre eu a resolver tudo.

A minha mãe chorou. O meu pai saiu da sala sem dizer palavra.

Nessa noite voltei para casa com um vazio enorme no peito. Passei horas a pensar se era eu o problema ou se simplesmente tinha chegado ao limite do que podia dar.

Hoje em dia falo menos com eles. Ajudo quando posso, mas já não deixo que me manipulem com culpa ou chantagem emocional. Foi preciso muita terapia e muitos desabafos com amigos para perceber que amor não pode ser moeda de troca.

Às vezes pergunto-me: quantos filhos em Portugal vivem esta realidade silenciosa? Quantos sentem que só valem pelo que podem dar? Será possível reconstruir uma relação familiar baseada no respeito mútuo e não na obrigação?