Devo entregar a casa ao meu irmão? Uma história de família que partiu o meu coração

— Mariana, precisamos falar. — A voz da minha mãe, do outro lado da linha, tremia. Era noite, e eu estava sentada no sofá da sala, com a chávena de chá ainda quente nas mãos. O silêncio da casa parecia pesar mais do que nunca.

— O que foi, mãe? — perguntei, já sentindo um aperto no peito. Ela nunca ligava àquela hora sem motivo.

— O teu irmão… O Pedro está com problemas. Ele e a Sofia vão ter de sair do apartamento onde estão. Não conseguem pagar mais a renda. — A pausa dela foi longa, como se procurasse coragem para continuar. — Pensei… pensei que talvez pudesses ceder-lhe o teu apartamento por uns tempos.

O mundo parou. O meu apartamento. O espaço que conquistei depois de anos a trabalhar em dois empregos, a abdicar de férias, de noites com amigos, de tudo o que era supérfluo. Era pequeno, mas era meu. Cada canto tinha uma história: as plantas na varanda que me faziam companhia nas manhãs solitárias, as fotografias coladas na parede da sala, o cheiro do café que me acordava todos os dias.

— Mãe… — A minha voz saiu fraca. — Estás a pedir-me para sair da minha casa?

— Não é para sempre, filha. Só até eles se orientarem. Sabes como o Pedro está aflito…

Fechei os olhos. Vi o rosto do Pedro, o irmão mais novo, sempre protegido por todos. Lembrei-me das vezes em que lhe emprestei dinheiro, das discussões quando ele perdeu mais um emprego, das desculpas constantes: “O mercado está difícil”, “O chefe não gostava de mim”, “A Sofia não aguenta mais esta vida”.

— E eu? — perguntei baixinho, quase sem querer ouvir a resposta.

— Tu és forte, Mariana. Sempre foste. Arranjas outra solução…

Desliguei o telefone com as mãos a tremer. Senti-me traída e sozinha. A minha mãe não perguntou como eu estava, se conseguia pagar outra renda, se tinha para onde ir. Só pensou nele.

Naquela noite não dormi. Revirei-me na cama, a cabeça cheia de memórias: o Pedro a chorar quando caiu da bicicleta e eu a correr para o acudir; o Natal em que ele partiu o braço e todos os presentes foram para ele; as festas de aniversário em que eu ficava em segundo plano porque “o Pedro é mais sensível”.

No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. Os colegas notaram o meu ar ausente.

— Está tudo bem? — perguntou a Joana, minha amiga e confidente.

— A minha mãe quer que eu entregue a casa ao meu irmão — respondi, sem conseguir conter as lágrimas.

Ela ficou em silêncio por uns segundos.

— E tu? O que queres?

Não soube responder.

À noite, o Pedro ligou-me.

— Mana… desculpa estar a ligar assim… A mãe já te falou?

— Já — respondi seca.

— Eu sei que é muito pedir… mas estamos mesmo aflitos. A Sofia está grávida…

O chão fugiu-me dos pés. Grávida? Ninguém me tinha dito nada.

— Parabéns… — murmurei, sem saber se devia sentir alegria ou raiva.

— Não temos para onde ir, Mariana. Só tu nos podes ajudar…

Senti-me encurralada. Se dissesse que não, seria egoísta? Se dissesse que sim, onde iria eu parar?

Passei dias a evitar a família. As mensagens da minha mãe tornaram-se cada vez mais insistentes: “O Pedro precisa mesmo”, “A Sofia não pode passar por isto agora”, “És a única solução”.

No trabalho, comecei a falhar prazos. O chefe chamou-me ao gabinete.

— Mariana, está tudo bem? Precisas de uns dias?

Quis gritar: “Preciso de uma família que me veja!” Mas limitei-me a acenar com a cabeça.

Numa sexta-feira à noite, fui jantar com os meus pais e o Pedro. A Sofia estava lá também, com uma barriga já saliente.

— Mariana — disse ela, com lágrimas nos olhos — não quero ser um peso para ti…

Olhei para ela e vi medo e esperança misturados no olhar. O Pedro segurava-lhe a mão com força.

— Não é justo — disse eu finalmente, a voz embargada. — Passei anos a lutar para ter alguma coisa minha. Agora pedem-me para abdicar disso… outra vez.

O meu pai olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— Mariana, és irmã dele! Família é para estas coisas!

Levantei-me da mesa e saí sem olhar para trás. Chorei no carro durante horas.

Nos dias seguintes, comecei a procurar quartos para arrendar. Os preços eram absurdos; os salários não chegam para tudo em Lisboa. Pensei em voltar para casa dos meus pais, mas sabia que seria ainda pior: olhares de julgamento, silêncios pesados ao jantar.

A Joana ofereceu-me o sofá dela por uns tempos.

— Não tens de fazer isto — disse ela. — Eles têm de aprender a resolver os próprios problemas.

Mas como dizer não à família? Como carregar essa culpa?

Na véspera de entregar as chaves ao Pedro, sentei-me sozinha no chão da sala vazia. Passei as mãos pelas paredes frias e chorei tudo o que tinha guardado dentro de mim durante anos: a sensação de ser sempre preterida, de ser forte porque ninguém me dava alternativa.

O Pedro apareceu com um sorriso nervoso.

— Obrigado, mana… Não sei como te agradecer.

Olhei para ele e vi o mesmo rapazinho inseguro de sempre.

— Espero que saibas dar valor — disse-lhe apenas.

Saí dali com uma mala na mão e um buraco no peito.

Hoje escrevo-vos do quarto minúsculo que arrendei numa casa partilhada com desconhecidos. Oiço risos no corredor e sinto falta do silêncio do meu lar. Pergunto-me se algum dia vão perceber o preço do meu sacrifício.

Será que vale mesmo a pena abdicar dos nossos sonhos pelos outros? Ou será que chega um momento em que temos de escolher por nós próprios?