Depois de Dez Filhas: Entre o Amor de Mãe e as Expectativas de uma Aldeia Portuguesa

— Maria, desta vez tem de ser um rapaz. — A voz da minha sogra ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro do pão acabado de sair do forno. Eu estava de costas, as mãos enterradas na massa, mas sentia o olhar dela cravado nas minhas costas, como se pudesse, só com a força da vontade, mudar o que crescia dentro de mim.

A aldeia inteira parecia em suspenso desde que se soube que eu estava grávida pela décima vez. Nove meninas, uma após a outra. Cada nascimento era recebido com menos entusiasmo, mais suspiros, mais olhares de pena ou de censura. O António, meu marido, já nem sorria quando lhe diziam “Parabéns!”. Limitava-se a acenar com a cabeça, os olhos perdidos num ponto qualquer do horizonte.

— Mãe, posso ajudar? — A voz doce da Leonor, a minha mais velha, interrompeu o silêncio tenso. Tinha só 14 anos, mas já carregava nos ombros o peso de ser a irmã mais velha de uma casa cheia de meninas.

— Vai brincar, filha. — respondi, tentando sorrir. Mas ela ficou ali, a olhar para mim, como se adivinhasse que eu precisava de companhia.

À noite, quando a casa finalmente se calava, sentava-me à janela do meu quarto e olhava para as luzes distantes da aldeia. Perguntava-me se alguma vez seria suficiente. Se alguma vez ouviria o António dizer, com orgulho, “A minha mulher deu-me um filho”. Ou se continuaria a ser aquela mulher que só sabia dar à luz meninas.

Lembro-me do dia em que casei com o António. Era uma tarde quente de junho, e a igreja estava cheia. A minha mãe chorava de alegria, e o meu pai apertava-me a mão com força. “És a nossa esperança, Maria. Vais dar continuidade ao nome da família.” Na altura, não percebia o peso dessas palavras. Agora, sentia-as como pedras no peito.

A cada gravidez, a esperança renascia. “Desta vez é um rapaz”, diziam todos. E eu acreditava. Fazia promessas a todos os santos, rezava de joelhos no chão frio da igreja. Mas cada vez que o médico dizia “É uma menina”, sentia uma mistura de alegria e culpa. Alegria por trazer mais uma vida ao mundo. Culpa por não corresponder às expectativas.

O António nunca me culpou abertamente. Mas havia silêncios. Havia noites em que ele ficava até tarde na taberna, a beber com os amigos. Havia discussões sussurradas com a mãe dele, que eu fingia não ouvir.

— O que é que ela tem de errado? — ouvi uma vez a minha sogra perguntar. — Nove meninas! Isto não é normal.

— Deixa a Maria em paz — respondeu o António, mas a voz dele soava cansada.

As minhas filhas eram o meu orgulho. Cada uma diferente da outra: a Leonor sonhadora, a Matilde rebelde, a Beatriz tímida, a Inês curiosa… A casa era cheia de risos e discussões, de vestidos coloridos pendurados nas portas e bonecas espalhadas pelo chão. Mas para os outros, parecia que nada disso importava. Só interessava o filho homem.

No mercado, as vizinhas olhavam para mim com pena disfarçada.

— Ainda não foi desta? — perguntavam.

— Talvez agora venha o rapaz — dizia outra.

Eu sorria e mudava de assunto. Mas por dentro, sentia-me cada vez mais pequena.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o futuro da família, o António entrou no quarto e sentou-se ao meu lado na cama.

— Maria… — começou ele, hesitante. — Eu sei que não é culpa tua. Mas… tu sabes como é aqui na aldeia. O nome da família… o meu pai… toda a gente espera…

— E tu? O que é que tu esperas? — perguntei-lhe, com a voz embargada.

Ele ficou em silêncio. E nesse silêncio percebi tudo o que ele não conseguia dizer.

Os meses foram passando. O meu corpo cansado carregava mais uma vida. As minhas filhas ajudavam-me em tudo: cozinhavam, limpavam, cuidavam umas das outras. A Leonor começou a faltar à escola para me ajudar em casa. O professor veio falar comigo.

— Dona Maria, a Leonor é uma aluna brilhante. Não pode deixá-la abandonar os estudos.

Senti vergonha. Queria dar às minhas filhas tudo o que não tive. Mas sentia-me presa entre as necessidades da casa e os sonhos delas.

Um dia, a Matilde chegou a casa a chorar. Tinha ouvido as colegas dizerem que a nossa família era “amaldiçoada” por não ter rapazes.

— Mãe, porque é que não podemos ser como as outras famílias?

Abracei-a com força.

— Nós somos uma família como as outras. Ou melhor: somos únicas. E tu és perfeita assim como és.

Mas por dentro doía-me não conseguir protegê-las do mundo.

Quando chegou o dia do parto, a casa estava em alvoroço. A minha sogra rezava no corredor. O António andava de um lado para o outro, nervoso. As minhas filhas espreitavam pela porta.

O médico chegou e mandou toda a gente sair. As dores eram intensas. Senti medo como nunca antes. Medo de não aguentar. Medo do que viria depois.

Horas depois, ouvi o choro do bebé. O médico sorriu para mim.

— Parabéns, Dona Maria. É uma menina saudável.

O silêncio foi pesado. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto. Não sabia se eram de alívio ou de tristeza.

O António entrou no quarto. Olhou para mim, depois para o bebé.

— Mais uma menina… — murmurou.

Eu abracei a minha filha com força. Senti uma onda de amor incondicional.

Dias depois, a aldeia soube da notícia. Houve quem dissesse “Coitada da Maria”. Houve quem dissesse “Que Deus a ajude”.

Mas naquela noite, sentei-me à mesa com as minhas dez filhas. Olhei para cada uma delas e senti um orgulho imenso.

— Mãe — disse a Leonor — um dia vou ser médica e vou cuidar de ti.

Sorri-lhe com lágrimas nos olhos.

— O que importa é o amor que temos umas pelas outras — disse-lhes. — O resto… o resto não interessa.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas às expectativas dos outros? Quantas mães choram em silêncio por não serem aquilo que esperam delas? Será que algum dia vamos aprender a valorizar o que realmente importa?