Demasiado Tarde para Mudanças: O Caminho de Volta Está Fechado – A História de Elvira Nogueira

— O que estás aqui a fazer? — perguntei, a voz a tremer, mal consegui empurrar a porta da sala. O cheiro a perfume estranho misturava-se com o aroma familiar do café acabado de fazer. A mulher, sentada no sofá onde tantas vezes embalei o meu filho, olhou para mim com um sorriso desconfortável. O meu marido, António, estava ao lado dela, com um ar de quem já não sabia onde se esconder.

Durante os três meses em que estive no hospital, nunca imaginei que o mundo cá fora pudesse mudar tanto. Fui internada de urgência com uma pneumonia grave. O meu filho, Miguel, vinha visitar-me aos fins-de-semana, sempre apressado, sempre com o telemóvel na mão. António aparecia menos vezes, dizia que o trabalho no escritório estava impossível. Eu acreditava. Sempre acreditei.

Agora, ali parada à porta da minha própria casa, percebi que tudo tinha mudado. — Elvira… — começou António, mas eu levantei a mão. Não queria ouvir desculpas. Não queria ouvir nada. Só queria acordar daquele pesadelo.

A mulher levantou-se e saiu sem dizer palavra. António ficou parado, olhos no chão. — Não era suposto ser assim — murmurou ele. — Eu não queria que soubesses desta forma.

Sentei-me na cadeira da cozinha, as pernas a tremerem tanto que pensei que ia desmaiar. — Quanto tempo? — perguntei.

— Uns dois meses… — respondeu ele, sem me olhar nos olhos.

Dois meses. Dois meses em que estive sozinha num quarto de hospital, a lutar para respirar, enquanto ele enchia a casa de outra pessoa. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim, misturada com uma tristeza tão funda que me parecia impossível sair dali.

Miguel entrou em casa nesse momento. Tinha 17 anos e os olhos do pai. Quando me viu ali sentada, percebeu logo que algo estava errado. — O que se passa? — perguntou.

António tentou falar, mas eu fui mais rápida. — O teu pai tem uma nova namorada — disse, sem rodeios. Miguel ficou branco como a cal.

— Mãe…

— Não digas nada — pedi-lhe. — Preciso de estar sozinha.

Fechei-me no quarto e chorei até não ter mais lágrimas. Lembrei-me de todos os sacrifícios: os turnos duplos na fábrica para pagar as contas, as noites sem dormir quando o Miguel era bebé e António dizia que estava cansado demais para ajudar. Lembrei-me das promessas feitas no altar da igreja de Santa Maria: na saúde e na doença, na alegria e na tristeza.

No dia seguinte acordei com o som de vozes baixas na cozinha. António e Miguel discutiam. — Não podes simplesmente deixá-la assim! — ouvia o meu filho dizer.

— Ela é forte. Vai ultrapassar isto — respondeu António.

Levantei-me devagar e entrei na cozinha. Os dois calaram-se imediatamente. Senti-me uma intrusa na minha própria casa.

— Vou sair daqui hoje — anunciei. — Não quero ser um peso para ninguém.

Miguel correu para mim. — Mãe, não faças isso! Fica comigo…

Olhei para ele e vi o medo nos seus olhos. Abracei-o com força. — Vou ficar bem, filho. Preciso de encontrar o meu caminho.

Arrumei as minhas coisas em duas malas pequenas. Não tinha para onde ir, mas sabia que não podia ficar ali nem mais um minuto. Liguei à minha irmã, Teresa, que vivia em Setúbal. Ela recebeu-me de braços abertos.

Na casa dela encontrei um pouco de paz. Teresa era mais nova do que eu e sempre teve uma vida diferente: solteira, independente, professora primária numa escola pública. Durante semanas chorei no seu ombro e ouvi-a repetir: — Elvira, tu mereces mais do que isto.

Mas como recomeçar aos 45 anos? Como reconstruir uma vida quando tudo aquilo em que acreditámos se desmorona?

Procurei trabalho em cafés e limpezas. Aceitava tudo o que aparecia. Teresa ajudava-me com as despesas e nunca me julgou por estar ali a recomeçar do zero.

Miguel ligava-me todos os dias ao início, mas depois as chamadas tornaram-se menos frequentes. Percebi que António estava a tentar afastá-lo de mim, dizendo-lhe que eu é que tinha abandonado a família. Um dia liguei-lhe e ouvi-o dizer:

— Mãe, não sei em quem acreditar…

O coração partiu-se-me outra vez. — Só te peço que venhas ver-me um dia destes — pedi-lhe.

Passaram-se meses até Miguel aparecer à porta da casa da minha irmã. Estava mais magro e parecia mais velho do que os seus 18 anos recém-feitos.

— Desculpa ter demorado tanto…

Abracei-o como se fosse a última vez. Falámos durante horas sobre tudo o que tinha acontecido. Ele contou-me que António estava a viver com a outra mulher e que a casa já não era a mesma sem mim.

— Sinto falta das tuas histórias antes de dormir — confessou ele.

Sorri entre lágrimas. — Ainda posso contar-te uma agora…

Aos poucos fui reconstruindo uma relação com o meu filho, mas nunca mais voltei a ser a mãe de antes. Havia uma distância entre nós que não conseguia ultrapassar.

António tentou justificar-se algumas vezes por mensagem ou telefone, mas nunca aceitei encontrar-me com ele. Não queria ouvir desculpas nem justificações para o imperdoável.

O tempo passou devagar. Arranjei um emprego fixo numa pastelaria perto da praia e comecei a sentir algum orgulho em mim própria outra vez. Fiz novas amigas – mulheres como eu, com histórias parecidas de traição e recomeço tardio.

Às vezes perguntava-me se teria feito algo diferente se soubesse o que me esperava ao regressar do hospital naquele dia fatídico. Talvez tivesse sido menos ingénua, talvez tivesse exigido mais respeito desde o início do casamento.

Mas outras vezes penso que aquela porta fechada foi também uma libertação. Pela primeira vez em muitos anos sou dona do meu destino – mesmo que isso signifique viver com menos dinheiro ou ver menos vezes o meu filho.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que entrou em casa há dois anos atrás e encontrou uma estranha sentada no seu sofá.

Será possível recomeçar depois dos 40? Será possível perdoar quem nos traiu tão profundamente? Ou será que só aprendemos realmente quem somos quando tudo aquilo em que acreditávamos se desfaz diante dos nossos olhos?

Gostava de saber: alguém já sentiu este vazio? Como encontraram forças para seguir em frente?