Das Raízes Rurais ao Caos Urbano: Quando Me Disseram, “Tu Não És de Cá”

— Vais mesmo deixar-nos assim, Leonor? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de mágoa e raiva contida. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, mas ninguém tinha apetite. O meu pai olhava para o prato, os dedos tamborilando no tampo da mesa, como se procurasse coragem para dizer algo que nunca diria.

Naquela noite, a última antes de partir para Lisboa, senti-me dividida entre o conforto das raízes e o apelo do desconhecido. A minha vila, São Martinho do Vale, era pequena demais para os meus sonhos — pelo menos era isso que eu repetia para mim mesma sempre que o medo ameaçava tomar conta. Tínhamos quinze mil almas, três carreiras de autocarro e um moinho antigo que agora era museu. Eu sabia o nome de quase toda a gente e todos sabiam o meu. Mas será que me conheciam mesmo?

— Mãe, eu preciso disto. Não posso passar a vida inteira aqui — respondi, tentando não tremer. O silêncio caiu pesado. O meu irmão mais novo, o Tiago, olhou-me com olhos de cão abandonado. Ele era o único que parecia entender o meu desejo de partir, talvez porque também sonhasse com algo maior.

A viagem até Lisboa foi feita num comboio frio e barulhento. Olhei pela janela durante horas, vendo os campos a desaparecerem lentamente, substituídos por prédios altos e ruas apressadas. O coração batia descompassado — medo, ansiedade, excitação. Quando finalmente cheguei à estação do Oriente, senti-me esmagada pela multidão. Ninguém me cumprimentou pelo nome. Ninguém me sorriu.

Os primeiros dias foram um choque brutal. O apartamento partilhado em Arroios cheirava a mofo e fritos velhos. Os meus colegas de casa — a Marta de Braga e o Rui de Setúbal — pareciam já ter aprendido as regras não escritas da cidade: não olhar nos olhos no metro, andar depressa, nunca confiar em estranhos. Eu tropeçava em tudo: nos passeios irregulares, nas filas intermináveis do supermercado, nas palavras rápidas e gírias que não entendia.

No primeiro dia na faculdade, perdi-me três vezes antes de encontrar a sala certa. Sentei-me na última fila, tentando passar despercebida. Durante o intervalo, uma rapariga loira aproximou-se.

— És caloira? Nunca te vi por aqui — disse ela.

— Sou sim… Sou da zona de Viseu — respondi, sorrindo timidamente.

Ela riu-se.

— Ah! Então és das aldeias! Vais ver que aqui é tudo diferente. Vais ter saudades do sossego.

Senti um nó na garganta. Não queria ser “a da aldeia”. Queria ser só a Leonor.

As semanas passaram e a saudade começou a pesar. As chamadas com a família eram cada vez mais curtas; a minha mãe falava pouco, como se me quisesse castigar pelo abandono. O Tiago mandava mensagens às escondidas: “A mãe está sempre triste.” Eu sentia-me culpada por cada sorriso que dava em Lisboa.

Uma noite, depois de um dia particularmente difícil — chumbei ao primeiro teste e perdi a carteira no metro — sentei-me num banco do Miradouro da Senhora do Monte e chorei como uma criança. Um senhor idoso sentou-se ao meu lado.

— Não és de cá, pois não? — perguntou ele, com um sorriso compreensivo.

Abanei a cabeça.

— Nota-se logo. Mas olha que todos nós já fomos forasteiros uma vez. Vais ver que te habituas.

Aquelas palavras ficaram comigo durante dias. Mas habituar-me parecia impossível. Os colegas riam-se do meu sotaque quando eu dizia “carro” ou “pão”. No supermercado, perguntaram-me se estava “de visita” porque não sabia onde estavam as coisas. No autocarro, uma senhora empurrou-me e murmurou: “Estes do campo nunca aprendem…”

Comecei a evitar falar sobre a minha terra. Quando perguntavam de onde era, respondia apenas: “Do centro”. Sentia-me traidora por esconder as minhas origens, mas era mais fácil assim.

O conflito com a família agravou-se quando decidi ficar em Lisboa nas férias da Páscoa para estudar para os exames. A minha mãe ligou-me aos gritos:

— Então agora nem na Páscoa vens ver-nos? Achas que és melhor do que nós?

Chorei durante horas depois dessa chamada. Senti-me sozinha como nunca antes.

Foi nessa altura que conheci o Miguel, um colega do curso que também tinha vindo de uma vila pequena do Alentejo. Encontrámo-nos por acaso na biblioteca e começámos a conversar sobre as nossas infâncias parecidas — as festas da terra, os vizinhos intrometidos, os domingos passados em família.

— Sabes o que mais me custa? — disse-lhe uma noite enquanto caminhávamos junto ao Tejo — É sentir que não pertenço nem aqui nem lá.

Ele assentiu.

— Somos estrangeiros em todo o lado. Mas talvez seja isso crescer: aprender a viver entre dois mundos.

Com o tempo, fui criando pequenas rotinas que me davam conforto: tomar café na mesma pastelaria todas as manhãs; ligar ao Tiago antes de dormir; visitar o Jardim da Estrela aos domingos para ler um livro e fingir que estava num campo aberto.

No final do primeiro ano, voltei finalmente a São Martinho do Vale para o aniversário da minha avó. A vila parecia mais pequena do que nunca. As pessoas olhavam-me como se eu tivesse mudado — e talvez tivesse mesmo mudado.

Durante o jantar em família, a minha mãe olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses.

— Estás diferente… mas ainda és a nossa Leonor?

Sorri-lhe com ternura e tristeza.

— Acho que sou… mas também sou outra agora.

A conversa ficou no ar como uma pergunta sem resposta. Voltei para Lisboa com o coração dividido — metade lá, metade cá.

Hoje pergunto-me: será que algum dia deixamos mesmo de ser forasteiros? Ou será que pertencemos sempre um pouco a todos os lugares onde já fomos felizes… ou infelizes?