“Amanhã fazem as malas e vão-se embora” – A história de uma mãe portuguesa que escolheu a si mesma
“Amanhã fazem as malas e vão-se embora.” As palavras saíram-me da boca antes que o meu coração pudesse travá-las. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. O João, o meu filho, olhou para mim como se eu fosse uma estranha. A Sara, a minha nora, ficou imóvel, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Eu própria tremia, agarrada à borda da mesa da cozinha, tentando não desabar ali mesmo.
“Não podes estar a falar a sério, mãe…” murmurou o João, a voz embargada. “Depois de tudo o que fizemos juntos… depois do pai…”
O nome do António pairou no ar como um fantasma. O meu marido tinha partido há dois anos, deixando-me sozinha numa casa demasiado grande para uma só pessoa. Quando o João perdeu o emprego e a Sara engravidou, abri-lhes a porta sem hesitar. Era o que qualquer mãe faria, pensei na altura. Mas ninguém me avisou do preço que teria de pagar.
Os primeiros meses foram suportáveis. O choro do bebé, as noites mal dormidas, as discussões sobre quem lavava a loiça ou quem ia buscar pão ao café do senhor Américo — tudo parecia normal, quase reconfortante. Mas com o tempo, as pequenas irritações transformaram-se em tempestades. A Sara criticava tudo: o cheiro do meu guisado, a maneira como dobrava as toalhas, até o modo como falava com o neto. O João fechava-se cada vez mais no quarto, perdido entre currículos e desespero.
Uma noite ouvi-os a discutir no corredor:
— A tua mãe está sempre em cima de mim! — gritava a Sara.
— Ela só quer ajudar… — respondia o João, mas sem convicção.
— Não quero ajuda! Quero privacidade! Isto não é vida!
Fingi não ouvir, mas cada palavra era uma facada. Senti-me intrusa na minha própria casa. Comecei a evitar a sala quando eles lá estavam. Passei a comer sozinha na cozinha, olhando para as fotografias antigas na parede: eu e o António na praia da Nazaré, o João pequeno com os joelhos esfolados, a família reunida no Natal. Onde tinha ido parar aquela felicidade?
Certa tarde, ao regressar das compras, encontrei a Sara sentada à mesa com a minha irmã, a Lurdes. Falavam baixo, mas apanhei um sussurro:
— Não aguento mais… Se ao menos ela fosse menos controladora…
A Lurdes olhou-me com pena quando entrei. Senti-me humilhada na minha própria casa. Fui para o quarto e chorei baixinho, para ninguém ouvir.
O ponto de rutura chegou numa noite fria de novembro. O neto estava doente e chorava sem parar. A Sara gritava comigo porque eu lhe dei chá de camomila sem perguntar. O João entrou na cozinha aos berros:
— Basta! Não aguento mais esta guerra!
Foi aí que percebi: estava a perder-me. Já não era dona da minha casa nem da minha vida. Passei anos a sacrificar-me pelos outros — pelo António, pelo João, agora pela Sara e pelo neto. E ninguém via isso. Ninguém agradecia.
Nessa noite não dormi. Sentei-me à janela, olhando para as luzes distantes da aldeia. Lembrei-me da minha mãe, que sempre dizia: “Filha, não te esqueças de ti.” Quantas vezes ignorei esse conselho?
De manhã, com as mãos frias e o coração apertado, fui ter com eles à sala. O João estava sentado no sofá com o neto ao colo; a Sara olhava para o telemóvel.
— Amanhã fazem as malas e vão-se embora — disse eu, com uma firmeza que não sabia ter.
O silêncio caiu como uma pedra.
— Mãe… por favor… — sussurrou o João.
— Não é justo — chorou a Sara.
Mas eu sabia que era necessário. Para mim. Para eles também.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A Sara mal me falava; o João andava cabisbaixo. O neto sorria-me sem perceber nada do que se passava. Ajudei-os a fazer as malas em silêncio. No dia da partida, abracei o João com força.
— Desculpa… — murmurou ele.
— Não tens de pedir desculpa — respondi, sentindo as lágrimas correrem-me pela cara. — Só quero que sejas feliz.
Quando fecharam a porta atrás deles, a casa pareceu-me ainda maior e mais vazia. Sentei-me na sala e chorei tudo o que tinha para chorar.
Os dias passaram devagarinho. Aprendi a gostar do silêncio, das rotinas só minhas: regar as plantas ao nascer do sol, ouvir fado baixinho enquanto cozinho para uma só pessoa, ler os livros antigos do António. Aos poucos fui recuperando pedaços de mim que julgava perdidos.
O João liga-me todas as semanas. A Sara ainda não fala comigo, mas manda fotografias do neto pelo WhatsApp. Sei que um dia vamos perdoar-nos uns aos outros.
Às vezes pergunto-me se fui egoísta ou apenas humana. Quantas mães se esquecem de si próprias em nome dos filhos? E quantas têm coragem de dizer basta?
E vocês? Já tiveram de escolher entre vocês próprios e quem mais amam? Será possível amar sem nos perdermos pelo caminho?