A Desilusão de Ser Aceite: Entre a Família do Meu Marido e a Minha Própria Identidade
— Não precisas de te esforçar tanto, Mariana. Aqui ninguém espera que sejas perfeita.
A voz da sogra, Dona Lurdes, cortou o silêncio da sala como uma faca afiada. Eu estava a terminar de pôr a mesa para o jantar de aniversário do Rui, o meu marido, e sentia as mãos a tremer. O cheiro do bacalhau com natas misturava-se com o perfume forte da Dona Lurdes, e por um momento desejei desaparecer dali.
Desde pequena, sonhava com uma família grande, barulhenta e cheia de amor. Cresci num T2 em Chelas, só eu e a minha mãe, que trabalhava horas sem fim para me dar o mínimo. O meu pai saiu de casa quando eu tinha seis anos, e nunca mais voltou. Por isso, quando conheci o Rui na faculdade e ele me levou a casa dos pais pela primeira vez, senti-me como uma criança num conto de fadas. A casa deles em Oeiras era espaçosa, cheia de risos e conversas animadas. Achei que finalmente tinha encontrado o meu lugar.
Mas naquele jantar, tudo mudou.
— Mariana, podes trazer mais vinho? — pediu o cunhado, Miguel, sem sequer olhar para mim.
Levantei-me apressada, tropeçando quase na cadeira da sobrinha, a Matilde, que revirou os olhos como se eu fosse invisível. Senti um nó na garganta. Tentei sorrir enquanto servia o vinho, mas percebi que ninguém ali esperava que eu participasse da conversa. Era como se eu fosse apenas uma empregada bem-intencionada.
O Rui percebeu o meu desconforto e tentou intervir:
— Deixem a Mariana sentar-se um bocado. Ela também faz parte da família.
Dona Lurdes suspirou alto:
— Claro que faz, Rui. Mas cada um tem o seu papel. E ela sabe muito bem qual é o dela.
O silêncio caiu pesado sobre a mesa. O meu coração batia tão forte que temi que alguém ouvisse. Olhei para o Rui à procura de apoio, mas ele desviou o olhar para o prato.
Naquela noite, depois de todos irem embora, enfrentei-o:
— Rui, sentes vergonha de mim?
Ele abanou a cabeça:
— Não digas disparates. Eles são assim com toda a gente. Não é contigo.
Mas eu sabia que era. Desde o início, Dona Lurdes fazia questão de lembrar as minhas origens: “A Mariana é muito esforçada, coitadinha.” Ou então: “Na tua casa não se fazia assim, pois não?” Sempre com aquele tom paternalista que me fazia sentir pequena.
No dia seguinte, liguei à minha mãe. Contei-lhe tudo entre soluços. Ela ficou em silêncio durante uns segundos antes de responder:
— Filha, não deixes que te façam sentir menos do que és. Lembra-te de onde vieste e do quanto já conquistaste.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. No trabalho, distraía-me facilmente. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia sempre com um sorriso forçado.
No fim-de-semana seguinte, havia outro almoço em casa dos sogros. Pensei em inventar uma desculpa para não ir, mas acabei por ceder ao pedido do Rui.
Quando cheguei, Dona Lurdes já estava na cozinha:
— Mariana, vê se não te esqueces do sal desta vez. O bacalhau ficou insosso na semana passada.
Senti as faces a arder. Respirei fundo e tentei ignorar o comentário. Durante o almoço, os assuntos giravam sempre à volta das viagens do Miguel ou das notas brilhantes da Matilde. Quando tentei partilhar uma história do meu trabalho — sou assistente social numa escola secundária — fui interrompida pela cunhada:
— Isso deve ser tão deprimente… Eu não conseguia lidar com esses miúdos problemáticos.
Sorri amarelo e calei-me. Senti-me cada vez mais deslocada.
Naquela noite, escrevi no meu diário:
“Será que algum dia vou ser aceite? Ou estarei sempre condenada a ser a outsider?”
O tempo foi passando e as pequenas humilhações acumulavam-se: um olhar de desdém aqui, um comentário venenoso ali. O Rui continuava a dizer que era impressão minha, mas eu sentia-me cada vez mais sozinha.
No Natal desse ano, decidi fazer um esforço extra: preparei doces típicos da minha infância — filhoses e arroz doce como a minha mãe fazia — e levei para casa dos sogros. Quando cheguei à sala com os tabuleiros, ouvi Dona Lurdes sussurrar para a irmã:
— Lá vem ela com as receitas pobrezinhas…
O meu coração partiu-se em mil pedaços. Saí para a varanda para não chorar à frente de todos. O Rui veio ter comigo:
— Mariana, volta para dentro. Não ligues ao que dizem.
Mas como não ligar? Como ignorar anos de desprezo disfarçado de educação?
Naquela noite, depois de todos irem embora, sentei-me no sofá da sala vazia e chorei até não ter mais lágrimas.
No dia seguinte, tomei uma decisão: ia falar com Dona Lurdes.
Fui até à casa dela sozinha. Ela abriu a porta com um sorriso falso:
— Mariana! Que surpresa…
Respirei fundo:
— Dona Lurdes, gostava de falar consigo sobre algumas coisas que têm acontecido.
Ela cruzou os braços:
— Se é sobre as minhas brincadeiras…
— Não são brincadeiras — interrompi. — São comentários que magoam. Eu faço parte desta família agora e mereço respeito.
Ela ficou calada durante uns segundos antes de responder:
— Mariana, tu és diferente. Não é fácil para nós aceitarmos certas coisas…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim:
— Diferente como? Porque cresci num bairro pobre? Porque a minha mãe era empregada de limpeza?
Ela desviou o olhar:
— Não é isso…
— É exatamente isso — insisti. — Mas sabe uma coisa? Tenho orgulho das minhas origens. E não vou deixar que me façam sentir menos do que sou.
Saí dali com as pernas a tremer mas com o coração mais leve do que nunca.
Quando contei ao Rui o que tinha feito, ele ficou em silêncio durante muito tempo antes de dizer:
— Talvez tenhas razão… Talvez eu tenha fechado os olhos por demasiado tempo.
As semanas seguintes foram estranhas: Dona Lurdes evitava olhares diretos comigo; Miguel limitava-se a cumprimentar-me com um aceno distante; até Matilde parecia menos arrogante. Mas eu sentia-me finalmente livre.
Comecei a passar mais tempo com a minha mãe e os meus amigos antigos. Redescobri quem era fora daquela família que nunca me aceitou verdadeiramente.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquele jantar fatídico. Ainda amo o Rui — ele esforça-se por mudar — mas aprendi que não posso depender da aceitação dos outros para saber o meu valor.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem presas à necessidade de serem aceites por quem nunca as vai compreender? E será que algum dia conseguimos mesmo libertar-nos dessas correntes?