A Casa Que Nunca Foi Minha: Entre o Amor e a Inveja Familiar
— Não é justo, mãe! A casa devia ser minha! — gritou a Andreia, com os olhos vermelhos de raiva, enquanto eu tentava manter a calma, sentada no sofá da sala ainda cheirando a tinta fresca.
O meu coração batia tão forte que quase abafava as palavras dela. Olhei para o meu marido, Rui, à espera de um gesto, uma palavra, qualquer coisa que me defendesse. Mas ele apenas baixou os olhos, envergonhado, como se quisesse desaparecer naquele momento.
Nunca pensei que um gesto de generosidade pudesse transformar-se num pesadelo. Quando decidimos comprar uma casa para a minha sogra, Dona Lurdes, foi porque o nosso T2 em Benfica já não dava para todos. O João e a Mariana estavam sempre a discutir por causa do espaço — ela queria brincar com as bonecas, ele queria montar as pistas de carros. E eu, no meio daquele caos, só pensava: “Como é que vamos continuar assim?”
Foi numa noite fria de janeiro que tive a ideia. Estávamos à mesa, Rui e eu, depois de mais uma discussão entre os miúdos. — E se comprássemos uma casa para a tua mãe? — sugeri. — Assim ela ficava mais confortável e nós podíamos ficar com o apartamento só para nós.
O Rui sorriu pela primeira vez em semanas. — Achas mesmo que conseguimos?
— Se apertarmos o cinto… e pedirmos um empréstimo pequeno. A tua mãe merece, Rui. Ela sempre nos ajudou tanto.
E assim começou tudo. Procurámos durante meses até encontrar aquela casinha térrea em Odivelas, com jardim e uma pequena horta onde Dona Lurdes podia plantar os seus tomates e coentros. No dia em que lhe entregámos as chaves, ela chorou como uma criança. — Nunca pensei ter uma casa só minha — disse-me, abraçando-me com força.
Mas a felicidade durou pouco.
A Andreia, irmã do Rui, apareceu logo no fim de semana seguinte. Veio com o namorado novo, um tipo arrogante chamado Sérgio, e mal entrou já começou a fazer perguntas: — Então isto agora é tudo para ti, mãe? E eu?
Dona Lurdes tentou explicar que era um presente nosso, mas Andreia não quis saber. — Vocês sempre foram os preferidos! — atirou ela, olhando para mim como se eu fosse uma intrusa.
A partir daí, tudo piorou. Andreia começou a aparecer cada vez mais vezes na casa da mãe. Trazia sacos de compras, dizia que vinha ajudar, mas na verdade só queria marcar território. Um dia cheguei lá e encontrei-a a medir as paredes da sala com uma fita métrica.
— O que estás a fazer? — perguntei, tentando soar casual.
— Só a ver se cabe aqui o meu sofá novo — respondeu ela, sem sequer me olhar nos olhos.
Fiquei gelada. Falei com o Rui naquela noite:
— Tens de falar com a tua irmã. Isto não pode continuar assim.
Ele suspirou. — A Andreia sempre foi assim… Mas eu falo com ela.
Só que nada mudou. Pelo contrário: Andreia começou a dizer à mãe que nós só tínhamos comprado a casa para ficarmos com o apartamento dela quando ela morresse. Que éramos interesseiros. Que eu estava a manipular tudo.
Dona Lurdes ficou cada vez mais triste e calada. Um dia encontrei-a sentada no jardim, com as mãos sujas de terra e os olhos perdidos no horizonte.
— O que se passa, Dona Lurdes?
Ela olhou para mim e murmurou: — Não quero ser motivo de guerra entre os meus filhos…
Senti um nó na garganta. Eu só queria ajudar. Só queria paz.
As discussões começaram a afetar tudo em casa. O Rui andava distante, os miúdos sentiam o ambiente pesado. Até no trabalho comecei a falhar prazos porque não conseguia pensar noutra coisa.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa ao telefone entre Rui e Andreia (ela gritava tanto que até os vizinhos ouviram), sentei-me sozinha na cozinha e chorei baixinho para não acordar as crianças.
No dia seguinte tomei uma decisão: ia falar diretamente com Andreia.
Encontrei-a na casa da mãe, claro. Estava sentada à mesa da cozinha, a beber café como se fosse dona daquilo tudo.
— Andreia, precisamos conversar — disse-lhe, tentando controlar o tremor na voz.
Ela olhou-me com desdém. — Vais dizer-me para sair da casa da minha mãe?
— Não é isso… Só quero que percebas que esta casa foi um presente nosso para ela. Não tem nada a ver contigo ou comigo. É dela.
Ela riu-se, amarga. — Achas mesmo que eu acredito nisso? Vocês querem é ficar bem na fotografia! Sempre quiseram ser os filhos perfeitos!
— Não é verdade… — tentei argumentar.
— Pois eu vou lutar pelo que é meu! — gritou ela, batendo com a mão na mesa.
Saí dali a tremer. Nunca me senti tão impotente.
Os meses passaram e a situação só piorou. Andreia começou a ameaçar levar o caso para tribunal. Disse à mãe que ia pedir partilhas em vida, que tinha direito à casa porque era filha também.
O Rui ficou devastado. — Isto vai destruir a família…
Eu já não sabia o que fazer. Comecei a evitar ir à casa da sogra para não criar mais conflitos. Dona Lurdes adoeceu — dizem que foi do coração, mas eu sei que foi da tristeza.
No hospital, antes de partir, ela chamou-nos aos dois ao quarto:
— Prometam-me… prometam-me que vão cuidar um do outro. Que não vão deixar isto destruir-vos…
Chorámos juntos ali mesmo.
Depois do funeral, Andreia apareceu com um advogado. Queria contestar tudo: dizia que tinha direito à casa porque era herdeira legítima.
Foram meses de papéis, reuniões e discussões intermináveis. O Rui perdeu peso, eu perdi noites de sono e os miúdos perguntavam porque é que já não viam tanto a tia Andreia.
No fim, por ironia do destino ou justiça divina (não sei), o tribunal decidiu que a casa era mesmo da Dona Lurdes e agora passaria para os herdeiros legais: eu e Rui ficámos com metade; Andreia com a outra metade.
O silêncio entre nós tornou-se ensurdecedor. A família nunca mais foi a mesma.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena tentar ajudar? Será que algum gesto de amor pode sobreviver à inveja? E vocês… já passaram por algo assim? Como lidaram?