Depois do Sernik: O Silêncio Que Ficou na Sala
— Não deixem as crianças sozinhas com a mãe. — A voz da Marta ecoou pela sala, cortando o ar como uma faca afiada. O cheiro doce do sernik ainda pairava, misturado ao aroma forte do café acabado de servir. Todos pararam, talheres suspensos no ar, olhares presos em mim, como se eu fosse uma peça de teatro que de repente se tornara real demais.
O meu filho, o Rui, baixou os olhos para a chávena. As minhas netas, a Zosia e a Leonor, olharam para mim com uma mistura de confusão e medo. E eu… eu senti o chão fugir-me dos pés. Marta levantou-se, ajeitou o cabelo atrás da orelha com um gesto brusco e saiu da sala sem olhar para trás. O silêncio que ficou foi ensurdecedor.
— Babcia, porque é que a mãe está chateada contigo? — perguntou Zosia, com os seus cinco anos e olhos grandes cheios de inocência.
Senti um nó na garganta. Como explicar a uma criança que os adultos também se magoam, que as palavras podem ser mais duras do que qualquer castigo? Olhei para Rui, esperando que ele dissesse algo, mas ele limitou-se a encolher os ombros, como se não tivesse forças para intervir.
A verdade é que tudo começou há meses, talvez anos. Pequenas farpas, comentários sussurrados na cozinha, olhares de lado quando eu sugeria como deviam educar as meninas. Sempre pensei que estava a ajudar. Afinal, criei dois filhos sozinha depois do António ter morrido naquele acidente na estrada de Sintra. Sempre fiz tudo por eles. Mas agora… agora parecia que tudo o que fazia era errado.
Naquela noite, depois de todos irem dormir, fiquei sentada na sala escura. O relógio da parede marcava as horas com um tique-taque irritante. Lembrei-me da primeira vez que conheci a Marta. Era uma rapariga tímida, com um sorriso bonito mas olhos desconfiados. Rui trouxe-a cá a casa num domingo de chuva. Eu preparei bacalhau à Brás e ela elogiou o tempero. Pensei que íamos dar-nos bem.
Mas a vida não é feita só de primeiras impressões. Com o tempo, fui percebendo que Marta tinha ideias muito próprias sobre tudo: desde a alimentação das meninas até à forma como deviam ser educadas. Eu tentava ajudar — dava conselhos sobre remédios caseiros quando elas estavam doentes, sugeria histórias para adormecer… mas cada sugestão era recebida como uma crítica.
A tensão foi crescendo. Pequenas discussões à mesa, silêncios prolongados nos almoços de domingo. Rui tentava apaziguar, mas acabava sempre por ceder à vontade da Marta. Eu sentia-me cada vez mais afastada da minha própria família.
Na semana passada, aconteceu o episódio do parque. Fui buscar as meninas à escola porque Marta estava atrasada no trabalho. Levei-as ao jardim perto de casa e deixei-as brincar enquanto lia um livro no banco ao lado. Quando Marta chegou e viu as meninas sujas de terra e folhas no cabelo, ficou furiosa.
— Não podes deixá-las assim! — gritou ela na rua, sem se importar com quem ouvia.
— São crianças, Marta… — tentei argumentar.
— Não percebes! Não és tu que tens de lhes dar banho depois! — E levou-as embora sem me deixar despedir.
Desde então, mal me falava. E agora isto… aquela frase dita em voz alta, diante de todos.
No dia seguinte, tentei falar com Rui enquanto ele tomava o pequeno-almoço.
— Rui… achas mesmo que não posso ficar sozinha com as meninas?
Ele suspirou, mexendo distraidamente no café.
— Mãe… tu sabes como a Marta é preocupada com tudo. Ela só quer o melhor para elas.
— E eu não quero? — perguntei, sentindo as lágrimas a quererem saltar.
Ele não respondeu. Levantou-se e saiu para o trabalho.
Fiquei sozinha na cozinha, rodeada pelo cheiro do pão torrado e pela solidão dos meus próprios pensamentos.
Durante dias tentei encontrar uma forma de resolver as coisas. Liguei à Marta várias vezes; ela não atendeu. Escrevi-lhe uma mensagem longa, explicando como me sentia magoada e pedindo desculpa se tinha feito algo errado. A resposta veio curta: “Não quero falar sobre isto agora”.
As meninas começaram a perguntar porque já não ficavam comigo depois da escola. Senti falta das suas gargalhadas pela casa, das mãos pequeninas a puxarem-me para brincar às escondidas ou para fazer bolos na cozinha.
Uma tarde, decidi ir ao parque sozinha. Sentei-me no mesmo banco onde costumava ler enquanto elas brincavam. Vi outras avós com os netos — algumas brincavam na areia, outras apenas observavam de longe, sorrindo com ternura. Senti uma inveja amarga apertar-me o peito.
Lembrei-me da minha própria mãe e de como ela era dura comigo quando eu era pequena. Sempre exigente, sempre crítica. Jurei a mim mesma que seria diferente com os meus filhos… mas será que repeti os mesmos erros sem perceber?
Nessa noite sonhei com o António. Ele estava sentado à mesa da cozinha, sorrindo para mim enquanto eu cortava fatias de sernik.
— Não te preocupes tanto — disse ele no sonho — As crianças sabem quem lhes quer bem.
Acordei com lágrimas nos olhos e uma sensação estranha de esperança misturada com tristeza.
No domingo seguinte houve mais um almoço de família. O ambiente estava tenso; até as meninas pareciam mais caladas do que o costume. Marta evitava olhar para mim; Rui tentava manter uma conversa banal sobre futebol e política local.
No fim da refeição, enquanto todos arrumavam a mesa, Zosia aproximou-se de mim em silêncio e abraçou-me pelas pernas.
— Gosto muito de ti, babcia — sussurrou ela.
Senti o coração derreter-se dentro do peito. Ajoelhei-me para ficar ao nível dela e abracei-a com força.
— Eu também gosto muito de ti, meu amor.
Marta viu-nos naquele momento e ficou parada à porta da cozinha. Por um instante pensei ver nos seus olhos algo diferente — talvez tristeza? Ou cansaço?
Tomei coragem e aproximei-me dela.
— Marta… sei que não sou perfeita. Só quero ajudar-vos e estar presente na vida das meninas. Se fiz algo que te magoou… peço desculpa.
Ela ficou em silêncio durante alguns segundos eternos antes de responder:
— Eu só quero proteger as minhas filhas… às vezes sinto que não me ouves.
— Talvez tenhas razão — admiti — Mas também preciso sentir que faço parte desta família.
Ela assentiu levemente e saiu da cozinha sem dizer mais nada.
As coisas não mudaram de um dia para o outro. Ainda há silêncios desconfortáveis e conversas interrompidas por mágoas antigas. Mas aos poucos vou percebendo que amar também é saber recuar; é aceitar que nem sempre temos razão ou que os nossos conselhos são bem-vindos.
Hoje escrevo estas palavras sentada no mesmo banco do parque onde tantas vezes esperei pelas minhas netas. O sol põe-se devagar atrás das árvores e sinto uma paz estranha dentro de mim — uma aceitação dolorosa mas necessária.
Será que algum dia conseguiremos perdoar-nos verdadeiramente uns aos outros? Ou estaremos condenados a repetir os mesmos erros geração após geração?