Uma Herança na Cidade Que Nos Separou
— Não, mãe! Eu não quero ir para o Porto! — gritei, sentindo a garganta apertar-se de raiva e medo. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma da terra molhada que entrava pela janela da cozinha. A minha mãe, Maria do Carmo, olhou-me com olhos cansados, mas firmes.
— Filha, não é uma questão de querer. É uma oportunidade que não podemos desperdiçar. — A voz dela tremia, mas tentava esconder a ansiedade. O meu pai, António, mantinha-se calado, olhando para as mãos calejadas sobre a mesa. O meu irmão mais novo, Rui, brincava com a colher, alheio ao peso daquela manhã.
Tudo começou há duas semanas, quando recebemos uma carta do advogado de Lisboa. A minha tia-avó Leonor, que nunca conheci bem — sempre distante, sempre misteriosa — tinha morrido e deixado-nos um apartamento no centro do Porto. A notícia caiu como uma bomba na nossa casa pequena em Vila Nova de Poiares. O meu pai ficou em silêncio durante dias; a minha mãe começou a fazer contas à vida; eu só pensava nos amigos que ia deixar para trás.
Naquela noite, ouvi os meus pais discutirem baixinho no quarto:
— António, tu sabes que aqui não temos futuro. A fábrica vai fechar, o Rui precisa de uma escola melhor…
— E a Ana? Já viste como ela está? Não fala comigo desde que recebemos a carta.
— Ela vai habituar-se. Todos vamos.
Na manhã seguinte, o meu pai chamou-me ao quintal. O orvalho brilhava nas folhas das couves e o cheiro da lenha queimava no ar frio.
— Ana, sei que isto é difícil para ti. Mas às vezes a vida obriga-nos a mudar. — Ele olhou-me nos olhos, e vi ali uma tristeza antiga, de quem já perdeu mais do que ganhou.
— E se não for melhor lá? E se nos arrependermos? — perguntei, a voz embargada.
Ele sorriu, triste:
— Só sabemos depois de tentar.
A decisão foi tomada sem mim. Em menos de um mês estávamos a empacotar memórias: fotografias desbotadas, brinquedos partidos, cartas antigas da minha avó. O Rui chorou quando desmontaram a cama dele; eu chorei em silêncio quando fechei a porta do meu quarto pela última vez.
Chegámos ao Porto numa tarde cinzenta de novembro. O apartamento era grande, com janelas altas e chão de madeira rangente. Mas o cheiro era estranho — uma mistura de mofo e solidão. Os vizinhos olhavam-nos de lado; sentia-me uma intrusa na minha própria casa.
Os primeiros dias foram um pesadelo. O Rui não se adaptava à escola nova; os colegas gozavam com o nosso sotaque do interior. A minha mãe tentava disfarçar o nervosismo com sorrisos forçados; o meu pai passava os dias a procurar trabalho e voltava cada vez mais calado.
Uma noite, ouvi-os discutir outra vez:
— Isto não está a resultar, Maria. O Rui está pior, a Ana não fala comigo…
— Temos de dar tempo! Não podemos voltar atrás agora!
Eu queria gritar-lhes que estavam errados, que nunca devíamos ter vindo. Mas calei-me. Passei a sair sozinha depois das aulas, a vaguear pelas ruas húmidas da cidade. Sentia-me invisível entre os prédios altos e as multidões apressadas.
Foi numa dessas caminhadas que conheci o Miguel. Estava sentado nas escadas da livraria Lello, a desenhar num caderno velho.
— És daqui? — perguntou-me, sem levantar os olhos do papel.
— Não… Vim de Vila Nova de Poiares. — Disse o nome quase como um pedido de desculpa.
Ele sorriu:
— Também não sou daqui. Vim de Bragança há dois anos. Vais habituar-te.
Miguel tornou-se o meu refúgio. Mostrou-me os recantos secretos da cidade: os jardins escondidos, os cafés onde ninguém nos conhecia. Com ele aprendi a gostar do Porto — mas nunca deixei de sentir falta da minha casa antiga.
Enquanto isso, em casa, as coisas pioravam. O meu pai arranjou um trabalho temporário numa obra, mas chegava exausto e mal falava connosco. A minha mãe começou a trabalhar num supermercado e passava os dias preocupada com as contas.
O Rui fechou-se no quarto e começou a ter más notas. Uma tarde encontrei-o a chorar:
— Quero voltar para casa… Aqui ninguém gosta de mim…
Abracei-o com força, sentindo-me impotente.
O tempo passou e as feridas não saravam. Um dia, ao chegar da escola, encontrei os meus pais sentados à mesa da cozinha — aquela mesma mesa que trouxemos da aldeia.
— Ana, precisamos falar contigo — disse o meu pai, com voz grave.
Sentei-me à frente deles, o coração aos pulos.
— Estamos a pensar vender o apartamento e voltar para Vila Nova de Poiares — disse a minha mãe.
Fiquei em choque:
— Mas… depois disto tudo? Depois de termos perdido tudo lá?
O meu pai suspirou:
— Não perdemos tudo. Perdemos-nos uns aos outros aqui.
A discussão foi longa e dolorosa. Eu queria ficar por causa do Miguel; o Rui queria voltar; os meus pais estavam divididos entre o medo do fracasso e o desejo de recomeçar.
Nessa noite chorei como nunca tinha chorado antes. Senti raiva deles por não conseguirem decidir; senti raiva de mim por não saber o que queria realmente.
No dia seguinte fui ter com o Miguel e contei-lhe tudo.
— Às vezes temos de escolher entre aquilo que queremos e aquilo que precisamos — disse ele, olhando-me nos olhos.
Voltei para casa decidida a falar com os meus pais. Sentámo-nos todos juntos na sala vazia e pela primeira vez em meses falámos honestamente sobre os nossos medos e desejos.
No fim decidimos vender o apartamento e voltar para a aldeia. Não foi fácil; houve lágrimas, discussões e silêncios pesados. Mas pela primeira vez senti que éramos uma família outra vez — unidos na dor e na esperança.
Despedir-me do Miguel foi como perder uma parte de mim mesma. Prometemos escrever cartas, mas ambos sabíamos que nada seria igual.
Voltámos para Vila Nova de Poiares no início da primavera. A casa parecia mais pequena do que me lembrava, mas o cheiro era familiar — terra molhada e café acabado de fazer.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivéssemos ficado? Ou será que às vezes é preciso perder tudo para perceber o que realmente importa? E vocês? Já sentiram que uma escolha vos separou das pessoas que amam?