Sussurros Atrás da Porta: O Fim de Semana Que Mudou Tudo

— Não percebes mesmo nada, pois não, mãe? — gritou Mariana, os olhos brilhando de lágrimas e raiva, antes de bater com força a porta da cozinha. O som ecoou pelo corredor do nosso apartamento antigo em Lisboa, fazendo estremecer até os quadros pendurados na parede. Fiquei ali parada, com a chávena de café a tremer-me na mão, sentindo o cheiro do café queimado misturado ao perfume doce da compota de morango que tinha acabado de fazer para o pequeno-almoço.

O silêncio que se seguiu foi tão denso que quase me sufocava. Sentei-me à mesa, tentando recordar em que momento tudo se tinha partido entre nós. Mariana era a minha única filha, e desde que o pai dela nos deixou — há mais de vinte anos — tentei ser mãe e pai ao mesmo tempo. Talvez tenha tentado demais. Talvez tenha sufocado demais. Ou talvez tenha falhado em tudo.

O relógio marcava nove e meia quando ouvi a campainha. Era o Tomás, o meu neto de dez anos, com a mochila às costas e um sorriso tímido. — Olá, avó! — disse ele, entrando devagarinho, como se pressentisse o ambiente pesado.

— Olá, querido. A tua mãe já foi? — perguntei, tentando disfarçar a voz embargada.

Ele assentiu com a cabeça. — Ela disse que volta amanhã à noite.

Fiz-lhe uma torrada e tentei sorrir. Mas Tomás olhava-me de lado, como se quisesse perguntar o que se passava. Não perguntei nada. Não queria que ele sentisse o peso dos nossos problemas.

Ao longo do dia, tentei agir normalmente. Fomos ao jardim da Estrela, jogámos às cartas e fizemos um bolo de chocolate. Mas cada vez que o telefone tocava — e não era Mariana — sentia um aperto no peito. O medo de perder a minha filha era maior do que qualquer orgulho ou mágoa.

À noite, depois de Tomás adormecer no sofá com o gato Tobias enroscado aos pés, sentei-me na varanda e deixei as lágrimas correrem. Recordei os tempos em que Mariana era pequena e corria para os meus braços sempre que caía ou tinha medo do escuro. Quando foi que deixei de ser o porto seguro dela? Quando foi que me tornei apenas mais uma voz crítica na vida dela?

No domingo de manhã, acordei cedo e comecei a preparar o almoço preferido da Mariana: bacalhau à Brás. Era uma tentativa desesperada de reatar qualquer laço desfeito. Tomás ajudou-me na cozinha, mas percebia-se que estava inquieto.

— Avó… — começou ele, hesitante — porque é que tu e a mãe estão sempre a discutir?

Fiquei sem resposta durante uns segundos. — Às vezes as pessoas magoam-se sem querer, Tomás. E depois têm dificuldade em pedir desculpa.

Ele olhou-me com aqueles olhos grandes e sinceros. — Mas tu gostas dela, não gostas?

— Mais do que tudo neste mundo — respondi, sentindo um nó na garganta.

Quando Mariana chegou para buscar o Tomás, entrou sem dizer palavra. O silêncio entre nós era quase palpável. Tomás correu para ela e abraçou-a com força.

— Mãe… a avó fez bacalhau à Brás! — disse ele, tentando animar o ambiente.

Mariana olhou para mim por um instante longo demais. Vi nos olhos dela o mesmo medo que sentia em mim: medo de perdermos uma à outra para sempre.

— Fica para almoçar connosco — arrisquei.

Ela hesitou, mas acabou por sentar-se à mesa. O almoço foi tenso; cada garfada parecia pesar toneladas. Até que Tomás, com a inocência das crianças, perguntou:

— Porque é que vocês não se abraçam?

Mariana largou os talheres e olhou para mim. Os olhos dela estavam vermelhos, mas havia ali uma vulnerabilidade que não via há anos.

— Mãe… desculpa — murmurou ela, quase inaudível.

Senti as lágrimas caírem-me pelo rosto sem conseguir controlar. Levantei-me e abracei-a com força. Pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez ainda houvesse esperança para nós.

Depois do almoço, ficámos as duas na cozinha a arrumar tudo em silêncio. Finalmente, Mariana falou:

— Sempre achei que nunca eras capaz de admitir quando erravas…

— E tu sempre achaste que eu não te ouvia… — respondi.

Ela sorriu tristemente. — Talvez tenhamos estado ambas erradas.

Quando Mariana e Tomás foram embora naquela noite, fiquei sozinha no apartamento silencioso. Mas desta vez o silêncio não era sufocante; era um silêncio cheio de possibilidades.

Agora pergunto-me: quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? E será que algum dia conseguimos realmente reparar aquilo que partimos sem querer?