Férias em Família: O Verão Que Mudou Tudo
— Não acredito que voltaste a esquecer o fogareiro, Evan! — gritou a Michelle, com a voz já rouca do vento salgado e da irritação acumulada.
O sol ainda nem tinha nascido quando acordámos naquela praia isolada da Costa Vicentina. O cheiro do mar misturava-se com o da terra húmida e dos pinheiros, mas o ambiente dentro da tenda era tudo menos sereno. Michelle, minha esposa há quase dez anos, estava de costas para mim, a remexer furiosamente nos sacos de campismo.
— Eu disse-te ontem à noite que estava no porta-bagagens! — tentei justificar-me, mas sabia que não adiantava. A verdade é que, desde que a Amanda e a pequena Leonor chegaram, tudo parecia mais tenso. Amanda é a irmã mais nova da Michelle, sempre cheia de opiniões e com uma energia que me deixava exausto só de olhar. Leonor, com os seus sete anos, era um furacão de perguntas e birras.
— Mãe, posso ir já para a água? — gritou Leonor do lado de fora, já de fato de banho e com areia até aos joelhos.
— Ainda não, querida! — respondeu Amanda, tentando manter a calma. — Primeiro tomas o pequeno-almoço.
Michelle lançou-me um olhar fulminante. — Vês? Nem para um café temos jeito agora. Isto era suposto ser férias!
Suspirei e saí da tenda. O céu estava limpo, mas sentia uma tempestade prestes a rebentar entre nós. Fui buscar lenha para improvisar um fogareiro. Enquanto partia ramos secos, ouvi Amanda e Michelle a discutir baixinho.
— Não percebo porque insistes em trazer o Evan para estas coisas. Ele nunca gostou de acampar — dizia Amanda.
— Não digas disparates. Ele só está cansado do trabalho — respondeu Michelle, mas sem grande convicção.
Aquelas palavras ficaram-me atravessadas. Sempre tentei ser o marido presente, mas ultimamente sentia-me um estranho na minha própria casa. O trabalho no escritório estava cada vez mais exigente e Michelle parecia distante.
O pequeno-almoço foi um silêncio desconfortável interrompido apenas pelo barulho das ondas e das gaivotas. Leonor atirava migalhas aos pássaros enquanto Amanda olhava para o telemóvel, provavelmente à procura de rede para falar com o namorado que ficara em Lisboa.
Depois do café morno e das torradas queimadas, Michelle sugeriu irmos todos dar um mergulho. A água estava gelada, mas Leonor entrou sem hesitar. Eu fiquei na areia, a observar as três mulheres da minha vida: Michelle a rir-se com Leonor às cavalitas, Amanda a tirar selfies com o mar ao fundo.
Foi então que ouvi um grito. O coração disparou-me no peito. Corri para a água e vi Leonor a debater-se, apanhada por uma corrente traiçoeira. Michelle tentava agarrá-la mas também ela estava em apuros. Sem pensar, atirei-me ao mar. A água cortava-me a pele como facas. Consegui agarrar Leonor pelo braço e empurrei-a para Amanda, que já tinha entrado até à cintura.
Michelle tossia e chorava ao mesmo tempo quando finalmente chegámos à areia. Amanda abraçou Leonor com força e olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
— Salvaste-as… — murmurou ela.
O resto do dia passou num torpor estranho. Michelle não me largava a mão, mas havia algo nos olhos dela — medo misturado com culpa? Amanda ficou calada durante horas, só falava com Leonor em sussurros.
À noite, sentámo-nos à volta da fogueira improvisada. O fogo lançava sombras nas nossas caras cansadas. Amanda abriu uma garrafa de vinho barato e serviu-nos copos generosos.
— Preciso de vos dizer uma coisa — começou ela, com a voz trémula. — Eu… eu ia pedir-vos para ficarem com a Leonor durante uns tempos quando voltássemos a Lisboa.
Michelle ficou branca como a areia ao luar.
— O quê? Porquê?
Amanda olhou para mim e depois para Michelle.
— Eu… estou grávida do Rui. E ele não quer saber da Leonor. Preciso de tempo para perceber o que vou fazer à minha vida.
O silêncio caiu pesado sobre nós. Michelle começou a chorar baixinho. Eu fiquei sem palavras. Sempre achei Amanda irresponsável, mas nunca pensei que nos pedisse algo assim.
— E eu? — perguntou Leonor, sem perceber bem o que se passava.
Amanda puxou-a para o colo e tentou sorrir.
— Vais ficar uns dias com os tios, princesa. Vai ser divertido.
Naquela noite não dormi. O som das ondas parecia agora ameaçador. Michelle virou-se para mim na escuridão da tenda.
— Achas que conseguimos? Cuidar dela?
Abracei-a sem responder. A verdade é que não sabia.
Os dias seguintes foram uma mistura de tensão e tentativas forçadas de normalidade. Levávamos Leonor à praia, fazíamos castelos de areia, mas havia sempre uma sombra sobre nós. Amanda passava horas ao telefone ou sozinha no carro estacionado junto às dunas.
Na última noite antes de voltarmos para Lisboa, houve uma tempestade violenta. A tenda quase voou com o vento e tivemos de nos abrigar todos no carro apertado. Leonor chorava baixinho enquanto Michelle lhe fazia festas no cabelo.
Quando finalmente amanheceu, Amanda já tinha feito as malas.
— Obrigada por tudo — disse ela antes de entrar no carro e arrancar sem olhar para trás.
Ficámos ali parados, eu, Michelle e Leonor, sozinhos naquela praia deserta onde tudo parecia ter mudado num instante.
Agora escrevo estas palavras meses depois desse verão fatídico. Amanda nunca mais voltou a falar connosco. Leonor acabou por ficar connosco mais tempo do que esperávamos; tornou-se parte da nossa rotina, das nossas discussões e dos nossos silêncios partilhados.
Às vezes pergunto-me: será que alguma vez conseguimos realmente conhecer as pessoas que amamos? Ou será que todos escondemos tempestades por detrás de mares aparentemente tranquilos?