Entre o Silêncio e a Tempestade: O Dia em que Precisei Deixar Ir
— Não podes simplesmente fugir de tudo, Inês! — gritou o Miguel, a voz ecoando pelo corredor estreito do nosso apartamento em Benfica. As palavras dele cortaram-me como vidro, mas eu já não tinha forças para responder. O cheiro do café frio misturava-se ao da chuva que batia nas janelas, e eu sentia o peito apertado, como se cada gota lá fora fosse mais um peso sobre mim.
Desde que me lembro, Miguel esteve ao meu lado. Conhecemo-nos na escola primária, partilhámos segredos no recreio do Liceu Camões, crescemos juntos entre os becos de Alfama e as tardes preguiçosas no Jardim da Estrela. Ele era o meu porto seguro, o sorriso fácil quando tudo parecia desabar. Mas agora, naquele instante, sentia-me uma estranha na minha própria casa.
— Não estou a fugir, Miguel. Só preciso de respirar — murmurei, tentando controlar o tremor na voz.
Ele aproximou-se, olhos vermelhos de cansaço e frustração. — Respirar? Inês, tu já não és a mesma. Desde que começaste aquele estágio no escritório do Dr. Almeida, parece que tudo o resto deixou de importar. Até eu.
As palavras dele doíam porque eram verdadeiras. O estágio era o meu sonho desde sempre: trabalhar em direito ambiental, lutar por causas que me faziam sentir viva. Mas ao mesmo tempo, sentia-me a perder tudo o que conhecia — a nossa rotina, os jantares improvisados de massa com atum, as conversas até tarde sobre nada e tudo.
A minha mãe sempre dizia que Lisboa era uma cidade de encontros e desencontros. Talvez por isso nunca se tenha casado com o meu pai. Cresci a vê-la sozinha, mas forte. Ela dizia-me: “Inês, nunca deixes ninguém ser o teu chão. Aprende a voar sozinha.” E agora, ali estava eu, prestes a magoar a única pessoa que sempre me segurou.
— Achas que eu não sinto falta de ti? — perguntei, finalmente encarando-o. — Mas não posso continuar a ser só metade de mim para te fazer feliz.
Miguel virou-se para a janela, os ombros caídos. — E eu? O que faço com esta saudade toda?
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Lá fora, os carros passavam apressados pela Avenida de Berna, indiferentes ao drama que se desenrolava entre quatro paredes.
Lembrei-me da última vez que rimos juntos: foi há dois meses, num piquenique improvisado no Parque Eduardo VII. Ele tinha feito questão de trazer pastéis de nata e vinho barato. Rimos tanto que chorei. Agora chorava por outros motivos.
O telefone tocou — era a minha mãe. Hesitei antes de atender.
— Inês? Está tudo bem? — perguntou ela, sempre atenta ao tom da minha voz.
— Não sei, mãe… — respondi baixinho. — Acho que vou perder o Miguel.
Ela suspirou do outro lado da linha. — Filha, às vezes amar é saber deixar ir. Não te esqueças do que te ensinei.
Desliguei e sentei-me no chão da cozinha. Miguel continuava calado, olhando para Lisboa como se procurasse respostas nas luzes da cidade.
— Lembras-te quando prometemos nunca mudar? — perguntei-lhe.
Ele sorriu tristemente. — Era fácil prometer quando tínhamos dezassete anos.
A verdade é que mudámos. Eu queria voar mais alto; ele queria raízes. E por mais que doesse admitir, talvez já não fôssemos as mesmas pessoas que se apaixonaram entre livros e sonhos adolescentes.
Naquela noite não dormimos juntos. Fiquei no sofá, enrolada numa manta velha cheia de memórias. Ouvi-o arrumar as coisas no quarto, cada gaveta fechada soava como um adeus antecipado.
No dia seguinte, acordei com o cheiro do café fresco. Miguel estava na cozinha, olhos inchados mas sorriso sereno.
— Fiz-te torradas — disse ele simplesmente.
Sentei-me à mesa sem dizer palavra. Partilhámos o pequeno-almoço em silêncio, cada um perdido nos seus pensamentos.
Quando terminei, levantei-me devagar e abracei-o com força. Senti o coração dele bater acelerado contra o meu peito.
— Obrigada por tudo — sussurrei-lhe ao ouvido.
Ele afastou-se só o suficiente para me olhar nos olhos. — Vais ser incrível, Inês. Só queria ter sido suficiente para ti.
As lágrimas caíram sem controlo. Saí de casa com uma mala pequena e um peso enorme no peito. Caminhei pelas ruas molhadas de Lisboa até ao escritório do Dr. Almeida. Sabia que estava a começar uma nova vida — sozinha desta vez.
Durante semanas tentei ocupar a cabeça com trabalho: processos intermináveis, reuniões tensas, cafés apressados na pastelaria da esquina. Mas todas as noites sentia falta do riso fácil do Miguel, dos seus abraços quentes nas noites frias de inverno.
A minha mãe ligava todos os dias. Às vezes discutíamos; ela achava que eu devia ter tentado mais. Outras vezes só ouvíamos o silêncio juntas ao telefone.
Um dia recebi uma mensagem do Miguel: “Espero que estejas bem.” Não respondi logo. Fiquei horas a olhar para aquelas palavras simples mas cheias de tudo o que ficou por dizer.
Na véspera do meu aniversário fui jantar com colegas do escritório. Riram-se das minhas histórias de infância em Alfama e brindaram ao futuro brilhante que todos diziam ver em mim. Mas quando cheguei a casa e fechei a porta atrás de mim, desabei em lágrimas.
Foi aí que percebi: crescer dói porque implica deixar partes de nós para trás — pessoas, lugares, sonhos antigos. Mas também nos dá espaço para descobrir quem realmente somos.
Hoje olho para trás com saudade mas sem arrependimento. Sei que amei o Miguel com tudo o que tinha na altura certa. E sei que precisei de partir para me encontrar.
Às vezes pergunto-me: será possível amar alguém sem nos perdermos pelo caminho? Ou será que crescer implica sempre deixar alguém para trás?
E vocês? Já sentiram este aperto no peito ao escolher entre o amor e vocês próprios?