A Casa do Segredo: Entre o Meu Irmão e a Minha Mulher
— Não podes contar-lhe, Miguel! — sussurrou a minha mulher, Inês, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto segurava o meu braço com força. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, mas o tempo parecia suspenso naquele instante. O meu coração batia tão alto que temi que o meu irmão, Rui, ouvisse do quarto ao lado.
A minha cabeça girava. Como é que cheguei aqui? Como é que a minha vida se transformou neste labirinto de mentiras e silêncios? Cresci em Vila Nova de Gaia, numa casa onde os segredos eram guardados como relíquias. O meu pai sempre dizia: “O que se passa dentro destas paredes, aqui fica.” Mas nunca imaginei que um dia seria eu a carregar um segredo capaz de destruir tudo.
Tudo começou há três meses, quando Rui apareceu à porta de casa com uma mala na mão e um olhar perdido. Tinha acabado de ser despedido da fábrica de cortiça onde trabalhava há anos. A mulher dele, Ana, tinha-o deixado pouco tempo antes. “Preciso de ficar aqui uns tempos, mano. Só até arranjar trabalho e pôr a cabeça no lugar”, pediu ele, com aquela voz rouca de quem já fumou demais e dormiu de menos.
Inês não gostou da ideia. “A nossa vida já está complicada o suficiente, Miguel. E se ele nunca sair daqui?” Mas eu não podia dizer não ao meu irmão. Rui sempre foi o rebelde da família, o que fazia disparates e depois vinha pedir ajuda. E eu… eu era o certinho, o responsável. O que limpava as asneiras dos outros.
No início, até foi bom tê-lo cá. As noites tornaram-se mais animadas, com conversas à mesa e risos que há muito não ecoavam pela casa. Mas depressa percebi que algo estava errado. Rui passava horas fechado no quarto, saía tarde da noite sem dizer para onde ia e evitava olhar-me nos olhos.
Uma noite, acordei com vozes baixas na sala. Levantei-me devagar e espreitei pela porta entreaberta. Vi Inês e Rui sentados no sofá, muito próximos. Ela chorava baixinho e ele segurava-lhe as mãos. “Não posso continuar assim”, ouvi-a dizer. “Isto vai acabar mal.” Senti um frio percorrer-me a espinha.
No dia seguinte, confrontei Inês. “O que se passa entre ti e o Rui?” Ela hesitou antes de responder:
— Não é nada do que estás a pensar… Ele só precisava de desabafar. Está perdido.
Quis acreditar nela. Mas a dúvida instalou-se como uma sombra que não me largava.
As semanas passaram e os silêncios entre nós tornaram-se mais longos. Rui começou a evitar-me. Inês estava sempre nervosa, saltava à mínima coisa. Um domingo à tarde, enquanto ela tomava banho, ouvi o telemóvel dela vibrar na mesa da cozinha. Uma mensagem de Rui: “Preciso de te ver hoje. Não aguento mais esta mentira.” Senti o chão fugir-me dos pés.
Esperei até à noite para falar com ela. O Rui tinha saído para beber com uns amigos. Sentei-me à mesa da cozinha com Inês à minha frente.
— Já sei tudo — disse eu, tentando manter a voz firme.
Ela ficou branca como a cal da parede.
— Miguel… desculpa… Eu nunca quis magoar-te…
As lágrimas começaram a cair-lhe pelo rosto. Contou-me tudo: depois de uma discussão feia entre nós há meses atrás — por causa do dinheiro, das contas atrasadas, do cansaço — ela sentiu-se sozinha. Rui estava cá em casa, vulnerável também. Uma noite beberam demais e aconteceu aquilo que nenhum dos dois queria admitir: beijaram-se. Depois disso, tentaram afastar-se um do outro, mas a tensão ficou no ar.
— Eu amo-te, Miguel! — jurou ela. — Foi um erro… Eu não quero perder-te!
Senti-me traído por ambos. O meu irmão e a minha mulher… Como é que podiam fazer-me isto? Passei dias sem conseguir olhar para eles. Rui tentou falar comigo:
— Desculpa, mano… Eu sou um desastre! Nunca quis estragar a tua vida…
Mas as palavras dele soavam ocas. A raiva misturava-se com tristeza e vergonha. O pior era saber que ainda os amava aos dois.
A minha mãe veio cá a casa quando percebeu que algo não estava bem. Sentou-se comigo na varanda enquanto fumava um cigarro atrás do outro.
— Filho… às vezes as pessoas erram porque estão perdidas. Mas tu tens de decidir se consegues perdoar ou não.
O problema é que eu não sabia se queria perdoar ou esquecer tudo aquilo.
As discussões tornaram-se diárias. Inês queria conversar, explicar-se; Rui queria desaparecer mas não tinha para onde ir; eu só queria fugir dali.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, Rui fez as malas e saiu porta fora sem dizer para onde ia. Inês chorou durante horas encostada à porta do quarto dele.
Os dias seguintes foram um vazio doloroso. A casa parecia maior e mais fria sem Rui — mas também mais silenciosa. Inês tentava aproximar-se de mim:
— Dá-me uma oportunidade… Vamos tentar outra vez…
Eu queria acreditar nela, mas cada vez que fechava os olhos via os dois juntos no sofá daquela noite.
O tempo passou devagar. Os vizinhos começaram a comentar — em Gaia toda a gente sabe tudo sobre todos — e eu sentia os olhares curiosos quando ia ao café ou ao supermercado.
Um dia recebi uma carta do Rui. Dizia que estava em Lisboa, tinha arranjado trabalho numa oficina e precisava de começar de novo longe daqui.
“Perdoa-me se puderes”, escreveu ele no final.
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e sentei-me na cama a olhar para o vazio.
Inês continuou ao meu lado — mais calma agora, mais presente — mas algo se partiu entre nós que nunca mais consegui colar.
Às vezes pergunto-me se devia ter lutado mais pelo nosso casamento ou se devia ter perdoado o meu irmão de verdade. Outras vezes penso se algum dia conseguirei confiar em alguém como confiava antes.
E vocês? O que fariam no meu lugar? Será possível reconstruir uma família depois de uma traição assim? Ou há feridas que nunca saram?