Vozes Caladas: Entre Sonhos Perdidos e Laços de Família

— Mãe, por favor, não voltes a falar nisso à frente da Milena! — A voz da minha filha, Sofia, cortou o ar da cozinha como uma faca afiada. Eu estava a segurar a chávena de chá com as mãos trémulas, sentindo o calor dissipar-se entre os meus dedos. Milena, a minha neta de dez anos, olhava para mim com aqueles olhos grandes e curiosos, esperando uma resposta que nunca viria.

Por dentro, gritava. Gritava com a força de quem guardou sonhos durante décadas, sufocados pelo peso das obrigações e do medo. Mas por fora, limitei-me a sorrir e a mudar de assunto, como sempre fiz. “A avó estava só a brincar, querida. Vai lá ver se o teu bolo já está pronto.”

Quando Milena saiu da cozinha, Sofia virou-se para mim, os olhos duros. — Não quero que lhe metas ideias na cabeça. A vida não é feita de sonhos, mãe. É feita de trabalho.

Quis responder-lhe que a vida também é feita de esperança, de pequenas alegrias roubadas ao quotidiano. Mas calei-me. Como sempre me calei.

Lembro-me do cheiro da terra molhada em Viseu, onde cresci. O meu pai era pedreiro e a minha mãe lavadeira. Aos domingos, depois da missa, eu fugia para o campo e cantava para as árvores e os pássaros, imaginando que era Amália Rodrigues no palco do Coliseu. A minha voz ecoava entre as vinhas e eu sentia-me livre.

Mas liberdade é coisa rara numa casa pobre. Aos quinze anos, deixei a escola para ajudar a minha mãe. Ouvia-a dizer à vizinha: “A Maria tem boa voz, mas isso não enche barriga.” E eu acreditava nela.

Conheci o António numa festa da aldeia. Ele dançava mal, mas fazia-me rir. Casámo-nos cedo demais. Ele trabalhava nas obras em Lisboa e eu fui atrás dele, deixando para trás as vinhas e os sonhos.

Lisboa era cinzenta e barulhenta. O nosso primeiro quarto era húmido e cheirava a mofo. António chegava tarde e cansado. Eu passava os dias a lavar roupa para fora e a cuidar da Sofia. À noite, quando tudo estava em silêncio, cantava baixinho para não acordar ninguém.

Uma noite, António ouviu-me. — Porque é que nunca cantas para mim? — perguntou ele.

Encolhi os ombros. — Não vale a pena.

Ele riu-se. — Tens vergonha?

Tinha vergonha de tudo: da minha voz, dos meus sonhos, da vida que não era a minha.

Os anos passaram depressa. Sofia cresceu e tornou-se professora. António adoeceu cedo demais; o cancro levou-o num inverno frio. Fiquei sozinha com as memórias e um vazio que nem as canções conseguiam preencher.

Agora vivo com Sofia e Milena num apartamento pequeno em Benfica. A rotina é sempre igual: acordar cedo, preparar o pequeno-almoço, levar Milena à escola, fazer compras no mercado. Às vezes cruzo-me com vizinhas no elevador e sorrio por educação.

Mas há dias em que sinto vontade de gritar. De subir ao telhado do prédio e cantar até que toda Lisboa me ouça.

Uma tarde de sábado, Milena entrou no meu quarto sem bater à porta. Trazia um rádio velho nas mãos.

— Avó, ensinas-me aquela música do fado?

O meu coração deu um salto. — Que música?

— Aquela que cantavas ontem na cozinha! — Ela sorriu com uma inocência desarmante.

Olhei para a porta; Sofia estava na sala, distraída com papéis da escola.

— Vem cá — sussurrei.

Sentei-me na cama e puxei Milena para junto de mim. Cantei-lhe “Estranha Forma de Vida” em voz baixa, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Milena olhou para mim maravilhada. — Avó, tens uma voz linda! Porque é que nunca cantas?

Engoli em seco. — Porque às vezes os adultos esquecem-se dos seus sonhos.

Ela ficou pensativa por um momento. — Eu nunca quero esquecer os meus sonhos.

Sorri-lhe e abracei-a com força.

Naquela noite, Sofia entrou no meu quarto furiosa.

— O que é que andas a dizer à miúda? Agora só fala em ser cantora! Não vês que isso não leva a lado nenhum?

Levantei-me devagar da cama. — Sofia, ela é uma criança. Deixa-a sonhar um pouco.

— Sonhar? E depois? Vais tu pagar-lhe as contas quando ela for grande? Vais tu protegê-la das desilusões?

— Não posso protegê-la de tudo… mas posso ensinar-lhe a não ter medo de tentar.

Sofia ficou em silêncio por um instante. Depois saiu do quarto sem dizer mais nada.

Na semana seguinte, Milena apareceu com um cartaz da escola: “Concurso de Talentos”.

— Avó, inscreves-te comigo? Podemos cantar juntas!

O meu coração apertou-se de medo e alegria ao mesmo tempo. — Não sei se tenho coragem…

— Por favor! — implorou ela com aqueles olhos grandes.

Na noite do concurso, vesti o meu melhor vestido azul-escuro — o mesmo que usara no casamento da Sofia — e pintei os lábios de vermelho como fazia quando era jovem. Milena estava radiante ao meu lado no palco improvisado do ginásio da escola.

Quando começou a música, senti as pernas tremerem. Mas olhei para Milena e vi nela tudo aquilo que tinha perdido: coragem, esperança, vontade de viver sem medo.

Cantámos juntas “Foi Deus” e pela primeira vez em muitos anos senti-me viva.

No final, houve aplausos tímidos mas sinceros. Sofia chorava na plateia — lágrimas silenciosas que diziam mais do que mil palavras.

Naquela noite, depois de deitar Milena, sentei-me à janela do meu quarto a olhar para as luzes da cidade.

Pensei em tudo o que perdi por medo ou por amor aos outros; nas palavras não ditas e nos sonhos calados; nas noites em que cantei só para mim mesma porque achava que já era tarde demais.

Mas será mesmo tarde demais para resgatar quem fomos? Quantos de nós deixamos morrer a nossa voz interior por causa do medo ou das expectativas dos outros?

E vocês? Quantos sonhos guardaram no fundo do peito à espera de um momento certo que nunca chegou?