Vão indo, eu já vos apanho – Uma história de segredos e desilusões familiares

— Vai indo, Ana, eu já vos apanho — disse o Rui, com aquela voz arrastada que eu já conhecia demasiado bem. Olhei para ele, parado à porta da cozinha, enquanto o cheiro do café queimado se misturava com o perfume barato que ele usava quando queria esconder alguma coisa. O Tiago, o nosso filho, já vestido com o fato novo da primeira comunhão, olhava para mim com olhos de quem não entende nada, mas sente tudo.

— Mas pai… hoje é o meu dia — murmurou o Tiago, a voz embargada pelo nervosismo e pela esperança.

O Rui desviou o olhar, mexendo no telemóvel como se procurasse uma desculpa qualquer. Eu sabia que algo não estava bem há semanas. As chegadas tardias, as mensagens apagadas, aquele silêncio pesado à mesa. Mas nunca pensei que fosse hoje. Não no dia em que o nosso filho ia dar o primeiro passo importante na igreja, rodeado pela família toda.

— Vai indo com a tua mãe, Tiago. Eu encontro-vos lá — insistiu ele, sem sequer me olhar nos olhos.

Senti um nó na garganta. O meu instinto gritava para não sair de casa, para obrigá-lo a vir connosco, para não deixar que aquele momento se perdesse. Mas havia uma vergonha antiga em mim, uma vontade de não fazer escândalos à frente do meu filho. Peguei nas chaves, ajeitei o cabelo do Tiago e saímos.

No carro, o silêncio era ensurdecedor. O Tiago olhava pela janela, os olhos brilhantes de lágrimas contidas. Eu tentava encontrar palavras para explicar o inexplicável.

— O pai deve estar atrasado com alguma coisa do trabalho… — menti, sabendo que ele não acreditava.

Chegámos à igreja de Santa Maria já com os sinos a tocar. A minha mãe e a minha irmã Mariana esperavam-nos à porta. A minha mãe olhou para trás de mim, procurando o Rui.

— Então? O Rui ficou em casa? — perguntou ela, a voz carregada de julgamento.

— Disse que vinha já — respondi, tentando sorrir.

A Mariana aproximou-se de mim e sussurrou:

— Ele anda estranho, Ana. Já te disse para abrires os olhos.

Afastei-me dela, sentindo o peso das palavras como pedras no peito. Não queria ouvir aquilo agora. Não hoje.

A missa começou. O Tiago estava lindo, nervoso mas orgulhoso. Eu tentava concentrar-me nele, mas os meus olhos fugiam sempre para a porta da igreja. Cada vez que alguém entrava, o meu coração disparava. Mas o Rui não apareceu.

Depois da cerimónia, as fotografias em frente ao altar foram tiradas com sorrisos forçados. A minha mãe insistia em perguntar pelo Rui a cada cinco minutos. O Tiago já não disfarçava a tristeza.

No almoço em casa dos meus pais, tentei manter as aparências. Os tios e primos falavam alto, riam-se das piadas do costume. Mas eu sentia-me como uma figurante na minha própria vida.

Foi quando a Mariana me puxou para a varanda que tudo mudou.

— Ana… preciso de te mostrar uma coisa — disse ela, tirando o telemóvel do bolso.

Mostrou-me uma fotografia: o Rui sentado numa esplanada em Aveiro, de mão dada com outra mulher. A data era daquela manhã.

Senti o chão fugir-me dos pés. O mundo rodou à minha volta e tive de me agarrar ao parapeito para não cair.

— Desculpa… achei que tinhas de saber — murmurou a Mariana.

As lágrimas caíram sem controlo. A vergonha misturava-se com raiva e uma tristeza tão funda que parecia não ter fim.

Voltei para dentro com os olhos vermelhos e sentei-me ao lado do Tiago. Ele olhou para mim e perguntou baixinho:

— O pai vai voltar?

Não consegui responder-lhe. Abracei-o com força e deixei que ele chorasse no meu ombro.

O resto do dia passou como um borrão. As pessoas foram-se embora aos poucos, deixando restos de bolo e copos por lavar. Fiquei sentada na cozinha até tarde, ouvindo o tique-taque do relógio e esperando uma mensagem do Rui que nunca chegou.

Quando finalmente entrou em casa, já passava da meia-noite. Cheirava a álcool e perfume barato.

— Ana… podemos falar? — perguntou ele, hesitante.

Levantei-me devagar e encarei-o.

— Falar sobre o quê? Sobre como escolheste outra pessoa no dia mais importante da vida do teu filho? Sobre como me mentiste durante meses?

Ele baixou os olhos, envergonhado.

— Desculpa… Eu não queria magoar-vos…

Ri-me amargamente.

— Não querias? Então porque é que o fizeste?

O Rui não respondeu. Ficou ali parado, como um miúdo apanhado em falta.

Naquela noite dormi no quarto do Tiago. Ele agarrou-se a mim como quando era bebé. Senti-me vazia e ao mesmo tempo cheia de perguntas sem resposta.

Nos dias seguintes, tentei manter alguma normalidade por causa do Tiago. Mas tudo estava diferente. As rotinas tornaram-se pesadas; cada pequeno gesto lembrava-me da traição.

A minha mãe ligava todos os dias para perguntar se já tinha decidido o que fazer. A Mariana ofereceu-me casa caso quisesse sair dali. Mas eu sentia-me presa entre o medo de ficar sozinha e a vergonha de admitir que a minha família tinha falhado.

O Rui tentou voltar ao normal durante umas semanas: comprou flores, fez jantares, prometeu mudar. Mas eu já não conseguia confiar nele. Cada vez que ele saía de casa, sentia um aperto no peito.

Uma noite, depois de adormecer o Tiago, sentei-me sozinha na sala escura e escrevi uma carta ao Rui:

“Não sei se algum dia vou conseguir perdoar-te. Não pelo que fizeste comigo, mas pelo que fizeste ao nosso filho. Ele merecia um pai presente no dia mais importante da vida dele.”

No dia seguinte entreguei-lhe a carta e pedi-lhe para sair de casa durante uns tempos.

Os meses passaram devagar. O Tiago perguntava menos pelo pai mas tornou-se mais calado, mais fechado em si mesmo. Eu tentava compensar com passeios ao parque e tardes de cinema, mas sabia que havia uma ferida aberta entre nós dois.

A família dividiu-se: uns achavam que devia perdoar o Rui “pelo bem do menino”, outros diziam para seguir em frente e recomeçar sozinha. Eu sentia-me perdida entre opiniões alheias e a minha própria dor.

Um dia encontrei o Rui na rua com a mesma mulher da fotografia. Ele tentou falar comigo mas eu virei-lhe as costas. Não era raiva — era cansaço.

Hoje olho para trás e pergunto-me: onde é que tudo começou a correr mal? Terá sido culpa minha? Ou será que há coisas que simplesmente não conseguimos controlar?

Às vezes dou por mim a pensar se algum dia vou conseguir confiar noutra pessoa ou se esta desilusão vai acompanhar-me para sempre.

E vocês? Já sentiram que num só dia perderam tudo aquilo em que acreditavam? Como se volta a acreditar depois disso?