Um Pedido de Desculpa Que Mudou Tudo no 728

— Desculpe, foi sem querer! — exclamei, sentindo o calor subir-me ao rosto enquanto olhava para a senhora de cabelos grisalhos cujo pé eu acabara de pisar. O autocarro 728 tinha travado tão bruscamente que quase caí para cima dela. O cheiro a chuva molhada misturava-se com o perfume barato e o suor dos passageiros apressados. Todos os olhos estavam em mim e nela, como se esperassem um espetáculo.

Ela olhou-me de cima a baixo, olhos duros, e respondeu num tom que cortou o silêncio: — Pois, desculpe não chega. Já viu bem onde põe os pés?

Senti o coração bater mais forte. Não era só vergonha; era raiva, era cansaço. A minha mãe sempre dizia que eu era desastrada, que nunca prestava atenção. E ali estava eu, adulta, a reviver as mesmas críticas, agora vindas de uma estranha.

— Olhe, não foi de propósito — tentei justificar-me, mas a minha voz saiu trémula. O motorista lançou-me um olhar pelo espelho retrovisor. Uma senhora ao meu lado murmurou algo sobre os jovens de hoje em dia.

O autocarro voltou a arrancar, sacudindo-nos como bonecos de trapos. Sentei-me no primeiro lugar livre, tentando desaparecer. Mas não consegui evitar ouvir os cochichos atrás de mim.

— Viste a maneira como ela respondeu? — sussurrou uma rapariga loira.
— Falta de educação — respondeu outra voz.

Fechei os olhos e respirei fundo. Lembrei-me da última discussão com o meu pai. “Nunca sabes pedir desculpa como deve ser”, atirou ele, depois de eu ter chegado tarde ao jantar de família. “Sempre a fugir das responsabilidades.”

O telemóvel vibrou no bolso. Mensagem da minha irmã, Mariana: “A mãe está pior. Vais passar cá hoje?”

O nó na garganta apertou-se ainda mais. Não queria ir a casa. Não queria encarar a doença da minha mãe, nem as discussões constantes entre o meu pai e a Mariana sobre quem fazia mais ou menos por ela. E eu? Eu fugia sempre que podia, escondendo-me atrás do trabalho e das desculpas esfarrapadas.

O autocarro parou junto à Praça do Comércio. A senhora do incidente levantou-se para sair e lançou-me um último olhar gelado. Senti vontade de chorar, mas engoli em seco. Não era só por ela; era por tudo o que tinha acumulado dentro de mim.

— Desculpe — repeti baixinho, já sem esperança de ser ouvida.

Quando cheguei ao escritório, a manhã parecia não querer acabar nunca. O meu chefe, o senhor António, chamou-me logo à parte.

— Inês, preciso falar contigo sobre o relatório de ontem. Está incompleto.

— Eu… pensei que tinha enviado tudo — respondi, mas ele já me interrompia.

— Pensaste mal. Preciso disto pronto até ao meio-dia.

Mais uma vez senti aquele peso: nunca era suficiente. Nem em casa, nem no trabalho, nem sequer num autocarro cheio de desconhecidos.

Ao almoço, sentei-me sozinha na esplanada do costume. O céu estava cinzento e as gaivotas gritavam sobre o Tejo. Peguei no telemóvel e escrevi à Mariana: “Vou passar aí depois do trabalho.”

Ela respondeu quase de imediato: “O pai está impossível hoje. Prepara-te.”

Suspirei. Queria fugir dali para fora, apanhar outro autocarro qualquer e desaparecer da cidade inteira.

Quando finalmente cheguei a casa dos meus pais naquela noite, o ambiente estava pesado como chumbo. A televisão estava ligada num volume absurdo para abafar as tosses da minha mãe. Mariana estava na cozinha a lavar loiça com força desnecessária.

— Olá — murmurei.

O meu pai nem olhou para mim. Mariana secou as mãos e veio ter comigo.

— Finalmente apareceste — disse ela num tom meio acusador.

— Tive um dia complicado… — comecei eu, mas ela já me interrompia.

— Todos temos dias complicados, Inês! A mãe precisa de nós!

A minha mãe chamou por mim com uma voz fraca do quarto. Fui ter com ela e sentei-me na beira da cama.

— Estás tão magra… — disse ela, passando-me a mão pelo cabelo como fazia quando eu era criança.

— Estou só cansada — menti.

Ela sorriu tristemente.

— Sempre foste assim… guardas tudo para ti. Não podes viver sempre a pedir desculpa por existir, filha.

As lágrimas vieram sem aviso desta vez. Chorei baixinho enquanto ela me abraçava com as poucas forças que lhe restavam.

Na sala ouvi o meu pai discutir com a Mariana sobre os medicamentos da mãe. O som das vozes deles misturava-se com as memórias daquele dia no autocarro: os olhares julgadores, o pedido de desculpa rejeitado, a sensação de nunca ser suficiente para ninguém.

Jantei em silêncio com eles. O meu pai criticou-me por não saber cortar o pão direito; Mariana revirou os olhos quando deixei cair um copo de água na toalha.

Quando me despedi da minha mãe para ir embora, ela segurou-me a mão com força inesperada.

— Inês… não deixes que os outros te façam sentir menos do que és. Nem aqui em casa, nem lá fora.

Saí para a rua com o coração apertado e os olhos inchados. O ar frio da noite soube-me bem na pele quente das lágrimas recentes.

No caminho para casa, sentei-me num banco junto ao rio e olhei para as luzes da cidade refletidas na água escura. Pensei em tudo: no autocarro, na senhora zangada, no meu chefe insatisfeito, na família partida pela doença e pelo ressentimento acumulado ao longo dos anos.

Porque é que um simples pedido de desculpa pode ser tão difícil? Porque é que às vezes parece que nunca somos perdoados – nem pelos outros, nem por nós próprios?

Será que algum dia vou conseguir deixar de pedir desculpa por existir? E vocês… também sentem este peso invisível nas pequenas coisas do dia-a-dia?