Toda a Minha Vida, a Minha Mãe Disse-me Que o Meu Pai Era um Anjo. Depois, Ele Bateu-me à Porta.

— Ariana, não abras a porta a estranhos! — ecoava ainda a voz da minha mãe na minha cabeça, mesmo depois de ter saído de casa há três meses. Mas ali estava eu, sozinha no meu pequeno apartamento em Almada, com o coração aos pulos enquanto alguém batia insistentemente à porta.

— Quem é? — perguntei, tentando soar firme, mas a minha voz tremeu.

— Ariana… sou o António. O teu pai.

O mundo parou. O meu corpo gelou. A maçaneta parecia pesar toneladas. Toda a minha vida, a minha mãe dissera que o meu pai era um anjo — alguém bom demais para este mundo, alguém que tinha partido cedo demais. Nunca uma fotografia, nunca uma carta. Apenas histórias vagas e um nome: António.

Abri a porta devagar. Do outro lado estava um homem alto, cabelo grisalho e olhos castanhos iguais aos meus. Trazia nas mãos um envelope amassado e um olhar cansado.

— Posso entrar? — perguntou, hesitante.

Fiz-lhe sinal para entrar, ainda atordoada. Sentou-se no sofá como se estivesse num confessionário.

— A tua mãe nunca me perdoou — começou ele, olhando para as mãos. — Mas eu nunca deixei de pensar em ti.

Sentei-me à sua frente, braços cruzados, tentando proteger-me de tudo aquilo.

— A minha mãe disse-me que tu eras… um anjo. Que tinhas morrido quando eu era bebé.

Ele suspirou fundo.

— Não morri, Ariana. Fui embora. Fui cobarde. E ela… ela preferiu que acreditasses numa mentira do que na verdade feia.

As lágrimas começaram a arder-me nos olhos. Senti raiva, tristeza e uma estranha curiosidade.

— Porque vieste agora?

Ele tirou do envelope uma fotografia antiga: eu bebé ao colo dele, ambos a sorrir. Atrás, uma dedicatória: “Para sempre juntos, mesmo longe”.

— Tentei voltar antes — disse ele, voz embargada. — Mas a tua mãe não deixou. Disse-me para desaparecer da tua vida. E eu… deixei-me convencer de que era melhor assim.

O silêncio encheu a sala como uma nuvem pesada. Lembrei-me das noites em que perguntava à minha mãe porque não tinha pai como as outras crianças. Ela respondia sempre com evasivas: “O teu pai era especial, Ariana. Agora é um anjo que olha por ti.” Eu imaginava-o nas nuvens, sorridente e protetor.

Agora ali estava ele, de carne e osso, com rugas e remorsos.

— O que queres de mim? — perguntei, quase num sussurro.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez.

— Quero conhecer-te. Quero pedir-te perdão. Quero ser teu pai — disse simplesmente.

Senti uma raiva súbita crescer dentro de mim.

— Achas que podes aparecer assim, depois de 25 anos, e tudo se resolve? A minha mãe sofreu tanto! Eu cresci sem saber quem era! — gritei-lhe, surpreendendo-me com a força da minha própria voz.

Ele baixou a cabeça.

— Sei que não posso apagar o passado. Mas posso tentar estar presente agora… se me deixares.

Levantei-me e fui até à janela. Lá fora, o Tejo brilhava ao sol da tarde. Lembrei-me das vezes em que desejei ter alguém para me ensinar a andar de bicicleta ou para me levar ao estádio da Luz aos domingos.

— A minha mãe mentiu-me toda a vida — disse eu, mais para mim do que para ele. — E tu deixaste.

Ele levantou-se devagar e pousou a mão no meu ombro.

— Não há desculpa para isso. Só te posso prometer que nunca mais desapareço.

Nesse momento ouvi o telemóvel vibrar: era uma mensagem da minha mãe. “Está tudo bem? Senti uma coisa estranha hoje… Amo-te.” Senti uma pontada no peito. Como podia ela continuar a controlar-me mesmo à distância?

Virei-me para António.

— A minha mãe vai odiar-me se souber que falei contigo.

Ele assentiu tristemente.

— Talvez um dia ela perceba que fizemos todos o melhor que sabíamos… mesmo errando tanto.

Sentámo-nos em silêncio durante minutos eternos. Depois ele levantou-se para sair.

— Vou deixar-te pensar — disse ele. — Mas estarei aqui sempre que quiseres falar.

Fechei a porta atrás dele e desabei no chão da cozinha, soluçando como uma criança perdida. Senti-me traída por ambos: pela mãe que me escondeu a verdade e pelo pai que fugiu dela.

Naquela noite não consegui dormir. Revirei as memórias todas: os natais só com a minha mãe, as perguntas sem resposta, os olhares tristes dela quando via pais com filhas no parque. E agora este homem estranho queria entrar na minha vida como se nada fosse?

No dia seguinte fui trabalhar como um autómato no escritório de contabilidade onde estava há pouco tempo. A minha colega Inês percebeu logo que algo não estava bem.

— Estás pálida… aconteceu alguma coisa?

Quase lhe contei tudo ali mesmo, mas calei-me. Como explicar um vazio tão grande?

À hora de almoço liguei à minha mãe:

— Mãe… preciso de falar contigo hoje à noite.

Ela percebeu logo pelo tom da minha voz que algo estava errado.

Quando cheguei a casa dela, estava sentada à mesa da cozinha com chá quente e olhos vermelhos de quem já chorou antes de eu chegar.

— Ele apareceu, não foi? — perguntou ela sem rodeios.

Assenti em silêncio.

Ela começou a chorar baixinho.

— Ariana… eu só queria proteger-te. Ele fez-me tanto mal… deixou-me sozinha quando mais precisei…

Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.

— Mas mentiste-me toda a vida. Fizeste-me acreditar numa fantasia…

Ela olhou-me nos olhos, desesperada:

— Preferias ter sabido que ele te abandonou? Que me deixou grávida e sem dinheiro? Que tive de pedir ajuda à tua avó porque ele desapareceu?

As palavras dela eram facas afiadas na minha pele.

— Preferia ter sabido a verdade — respondi baixinho. — Agora não sei quem sou nem em quem confiar…

Chorámos as duas durante muito tempo. Pela primeira vez vi a minha mãe como uma mulher frágil e assustada, não como uma heroína infalível.

Nos dias seguintes António mandou-me mensagens curtas: “Estou aqui”, “Penso em ti”. Não respondi logo. Precisei de tempo para digerir tudo aquilo.

Um sábado decidi encontrá-lo num café perto do rio. Ele sorriu quando me viu chegar, nervoso como um miúdo antes do primeiro dia de escola.

Falámos durante horas: contou-me sobre os erros dele, sobre os anos em França a tentar recomeçar, sobre as saudades que sentia sem nunca ter coragem de voltar antes. Eu contei-lhe sobre mim: os meus medos, as minhas conquistas pequenas mas importantes, o vazio que sempre senti sem saber porquê.

Não foi fácil perdoar-lhe nem à minha mãe. Ainda hoje há dias em que me sinto dividida entre os dois mundos: o da mentira protetora e o da verdade dolorosa.

Mas aprendi que as famílias são feitas de imperfeições e segredos mal contados. E que às vezes precisamos de perder tudo para podermos recomeçar do zero.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vidas são construídas sobre mentiras bem-intencionadas? E será possível amar verdadeiramente alguém depois de tanta dor?