Tarde Demais para o Arrependimento: O Caminho Sem Volta – A História de Sofia e a Sua Família
— Não me olhes assim, Sofia. Não foi nada planeado… — A voz da minha irmã, Marta, tremia, mas não havia ali inocência. Só culpa.
Senti o chão fugir-me dos pés. O eco das palavras dela misturava-se com o silêncio pesado da sala. O relógio da parede marcava as dez e meia da noite, mas para mim o tempo tinha parado. O Rui, meu marido há vinte anos, estava sentado no sofá, as mãos entrelaçadas, incapaz de me encarar.
— Como é que vocês puderam? — perguntei, a voz rouca, quase um sussurro. — Como é que conseguiram esconder isto de mim durante tanto tempo?
Marta baixou os olhos. Rui tentou aproximar-se, mas recuei instintivamente.
— Sofia, eu… — começou ele, mas não conseguiu terminar. O silêncio dele era mais doloroso do que qualquer palavra.
A nossa casa em Almada sempre fora um refúgio para mim. Cresci ali, entre as paredes cheias de fotografias de família, risos e discussões típicas de quem se ama. Quando casei com o Rui, achei que estava a construir o mesmo lar seguro para os nossos filhos, a Inês e o Tiago. Nunca imaginei que o maior perigo viesse de dentro.
Naquela noite, depois de Marta sair — ou melhor, fugir — fiquei sentada na cozinha, a olhar para a chávena de chá frio. O Rui tentou falar comigo várias vezes, mas eu não conseguia ouvir nada. Só via flashes: os jantares em família, as férias no Algarve, os aniversários em que Marta era sempre a primeira a chegar e a última a sair. Agora tudo fazia sentido: os olhares trocados, os risos cúmplices que eu atribuía à amizade de infância deles.
No dia seguinte, acordei com o rosto inchado de tanto chorar. A Inês entrou no quarto sem bater.
— Mãe? O pai dormiu no sofá… Está tudo bem?
Olhei para ela e vi-me a mim própria aos dezasseis anos: ingénua, cheia de sonhos e confiança no mundo. Não consegui mentir-lhe.
— Não está tudo bem, filha. Mas vai ficar…
Ela sentou-se ao meu lado e abraçou-me. Senti o peso do mundo nos ombros dela também. O Tiago apareceu à porta, hesitante.
— Mãe…
Chamei-os para junto de mim e ficámos ali os três, abraçados no silêncio da manhã.
Durante semanas vivi num estado de torpor. Ia trabalhar no hospital — sou enfermeira no Garcia de Orta — e fingia normalidade. Os colegas perguntavam se estava cansada; eu sorria e dizia que sim, que eram só noites mal dormidas. Ninguém sabia do buraco negro que me consumia por dentro.
A Marta tentou ligar-me várias vezes. Ignorava as chamadas. Recebi uma carta dela — escrita à mão, como fazíamos em miúdas — onde pedia perdão e dizia que nunca quis magoar-me. Rasguei-a sem ler até ao fim.
O Rui mudou-se para casa da mãe dele em Setúbal. Tentou ver as crianças todos os fins-de-semana. A Inês recusava-se a falar com ele; o Tiago chorava todas as noites antes de dormir. Eu sentia-me uma sombra do que fui.
Uma tarde, ao sair do hospital, encontrei a minha mãe à porta de casa.
— Sofia, precisamos de conversar.
— Não quero falar sobre isso, mãe.
— Não tens escolha. A família não se desfaz assim.
Fiquei furiosa.
— A família desfaz-se quando alguém trai! Quando alguém destrói tudo aquilo em que acreditávamos!
Ela suspirou.
— A tua irmã está arrependida…
— Não quero saber! — gritei-lhe. — Ela não é mais minha irmã!
A minha mãe chorou nesse dia como nunca a vi chorar antes. Senti raiva dela por tentar defender a Marta, mas também percebi que ela sofria por nós todas.
Os meses passaram devagar. O divórcio foi um processo doloroso e humilhante: advogados frios, papéis para assinar, contas para dividir. Cada vez que via o Rui sentia vontade de lhe perguntar porquê — porquê ela? Porquê nós? Mas nunca tive coragem.
No Natal desse ano recusei-me a ir à casa dos meus pais. Passei a noite sozinha com os miúdos; fizemos bacalhau à Brás e vimos filmes antigos na televisão. A Inês chorou baixinho quando lhe dei um livro com uma dedicatória: “Para nunca deixares de acreditar em ti.” O Tiago adormeceu no meu colo antes da meia-noite.
No início do ano seguinte comecei a ter ataques de ansiedade. Ia ao supermercado e sentia o coração disparar ao ver casais felizes nos corredores. Evitava encontros com amigos; não queria explicar nada a ninguém. Senti-me velha e gasta aos quarenta e dois anos.
Um dia, ao sair do trabalho, encontrei o Rui à porta do hospital.
— Precisamos de conversar — disse ele.
Olhei para ele como se fosse um estranho.
— Sobre o quê? Já disseste tudo o que tinhas a dizer.
Ele baixou os olhos.
— Não quero perder-te completamente…
Ri-me amargamente.
— Já me perdeste há muito tempo.
Ele tentou tocar-me na mão; afastei-me.
— Sofia… Eu errei. Fui um cobarde. Mas amo-te…
Senti vontade de gritar-lhe que amor não era aquilo; que amor não destruía lares nem famílias; que amor não era egoísmo nem traição. Mas calei-me. Não valia a pena.
Depois desse dia deixei de atender as chamadas dele também. Foquei-me nos meus filhos e no trabalho. Comecei a fazer caminhadas à beira Tejo ao fim da tarde; sentia o vento frio na cara e pensava em tudo o que perdi — mas também em tudo o que ainda podia construir.
A Marta continuava ausente da minha vida. A minha mãe tentava juntar-nos; eu recusava sempre. Sentia falta dela às vezes — das conversas longas à noite, das gargalhadas partilhadas — mas não conseguia perdoar-lhe.
Um ano depois da separação recebi uma carta da Marta outra vez. Desta vez li até ao fim:
“Sofia,
Sei que nunca vou poder reparar o mal que te fiz. Sei que te perdi para sempre e mereço isso. Só queria que soubesses que te amo e que vou amar sempre. Foste mais do que uma irmã; foste minha amiga, confidente… Perdoa-me se puderes.”
Chorei durante horas depois de ler aquelas palavras. Senti raiva dela por me obrigar a sentir pena; senti raiva de mim por ainda sentir saudades dela.
A vida foi seguindo o seu curso: os miúdos cresceram, fui promovida no hospital, comprei um carro novo sozinha pela primeira vez na vida. Mas havia sempre um vazio dentro de mim — um buraco deixado pela traição daqueles em quem mais confiava.
Hoje olho para trás e pergunto-me se poderia ter feito algo diferente; se devia ter perdoado ou tentado reconstruir alguma coisa com eles. Mas depois lembro-me das noites em claro, das lágrimas dos meus filhos, do silêncio pesado à mesa do pequeno-almoço…
Será possível voltar a confiar em alguém depois disto? Ou será que estamos todos condenados a viver com as cicatrizes das escolhas dos outros?