Quatro vidas, um só quarto: Entre o amor e o desespero
— Mãe, não posso mais — sussurrou o Miguel, encostado à porta do nosso minúsculo quarto, enquanto a pequena Leonor chorava no berço improvisado ao lado da cama. O cheiro a leite azedo misturava-se com o perfume barato da minha nora, a Andreia, que tentava adormecer o Tiago, o mais velho, com uma canção desafinada. Eu estava sentada na beira da cama, com as mãos doridas de tanto esfregar roupa à mão, a olhar para o teto manchado de humidade.
— Não podes mais o quê, Miguel? — perguntei, tentando não levantar a voz para não acordar o bebé que crescia na barriga da Andreia. — Achas que algum de nós pode? Achas que eu queria ver os meus netos a crescerem assim, apertados como sardinhas em lata?
Miguel passou as mãos pelo cabelo, os olhos vermelhos de cansaço e frustração. Tinha só vinte e dois anos, mas parecia já ter vivido uma vida inteira. Quando me disse que ia ser pai ainda no segundo ano da faculdade, senti o chão fugir-me dos pés. O meu marido tinha morrido há três anos, e desde então era eu quem segurava tudo — ou tentava. O trabalho na limpeza do hospital mal dava para pagar a renda deste T2 em Chelas, quanto mais para alimentar quatro bocas pequenas e dois adultos perdidos.
— Eu só queria… — começou ele, mas calou-se quando a Andreia lhe lançou um olhar de gelo. — Queria acabar o curso, mãe. Dar uma vida melhor aos miúdos. Mas não consigo estudar aqui. Não consigo dormir. Não consigo ser nada.
Senti uma raiva surda crescer-me no peito. Não era justo. Não era justo para ele, nem para mim, nem para ninguém. Mas a vida nunca foi justa connosco. Cresci numa aldeia perto de Santarém, filha de agricultores pobres. Vim para Lisboa à procura de futuro e encontrei apenas trabalho duro e desilusões. Casei cedo com o António, que era bom homem mas fraco de saúde. Quando ele partiu, fiquei sozinha com o Miguel e a casa cheia de contas por pagar.
A Andreia entrou na nossa vida como um furacão. Bonita, rebelde, cheia de sonhos grandes demais para caberem neste bairro esquecido por Deus. Engravidou cedo e nunca mais voltou à escola. Os pais dela cortaram relações quando souberam do segundo filho; agora só tinha a mim e ao Miguel.
— Se ao menos tivéssemos mais um quarto… — murmurou ela, embalando o Tiago que já ressonava baixinho.
— E dinheiro para fraldas — acrescentei eu, sem conseguir evitar o sarcasmo.
O silêncio caiu pesado sobre nós. Lá fora ouvia-se o barulho dos vizinhos a discutir por causa da televisão alta. Aqui dentro, cada um lutava com os seus próprios fantasmas.
À noite, quando todos dormiam (ou fingiam dormir), eu ficava acordada a pensar onde é que falhámos. Será que devia ter sido mais dura com o Miguel? Ter-lhe dito para não se meter com raparigas antes de acabar os estudos? Ou devia ter trabalhado mais horas, poupado mais dinheiro? Mas como se poupa quando tudo falta?
Certa manhã acordei com um grito abafado. A Andreia estava sentada na cama, as mãos entre as pernas ensanguentadas.
— Mãe! — chamou o Miguel, em pânico.
Corri para ela e vi logo que era sério. O bebé vinha antes do tempo. Liguei para o INEM com as mãos a tremer e tentei acalmar os miúdos enquanto esperávamos pela ambulância. O Tiago chorava agarrado à minha saia; a Leonor olhava tudo com olhos assustados.
No hospital disseram-nos que era preciso ficar internada. Fiquei com os netos em casa, sozinha pela primeira vez desde que tudo isto começou. As noites eram longas e frias; as crianças sentiam falta da mãe e perguntavam por ela sem parar.
Miguel ia ao hospital todos os dias depois das aulas (quando conseguia ir). Voltava sempre calado, os ombros cada vez mais curvados pelo peso do mundo.
Uma noite, depois de adormecer os miúdos com histórias inventadas sobre princesas que viviam em castelos apertados mas felizes, sentei-me à janela a fumar um cigarro escondido. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me se algum dia sairíamos dali.
Quando a Andreia voltou para casa com o bebé nos braços — uma menina pequenina chamada Matilde — parecia outra pessoa. Mais magra, mais pálida, mas com um brilho estranho nos olhos.
— Não aguento mais isto — disse ela ao Miguel na primeira noite de volta. — Ou arranjas trabalho ou vou-me embora para casa da minha tia em Setúbal.
Miguel olhou para mim como quem pede socorro.
— E eu faço o quê? Largo a faculdade? Trabalho onde? Quem fica com os miúdos?
— Não sei! — gritou ela. — Mas não posso viver assim!
A discussão acordou as crianças; todos choravam ao mesmo tempo. Senti-me tão impotente como nunca antes na vida.
No dia seguinte fui falar com a assistente social do centro de saúde. Expliquei-lhe tudo: a casa pequena demais, o dinheiro que não chega, o desespero do meu filho e da nora.
Ela ouviu-me com ar cansado e disse:
— Dona Rosa, há muitas famílias assim… Posso tentar pôr-vos numa lista para habitação social, mas demora anos.
Saí de lá pior do que entrei.
As semanas passaram devagar. Miguel arranjou um part-time numa loja de telemóveis; Andreia começou a fazer limpezas em casas alheias. Eu continuei no hospital, cada vez mais exausta.
Um dia cheguei a casa e encontrei a Andreia a fazer as malas.
— Vou mesmo para Setúbal — disse ela sem me olhar nos olhos. — Preciso de espaço. Preciso de respirar.
Miguel tentou impedi-la mas ela foi na mesma, levando só a Matilde consigo. Tiago e Leonor ficaram connosco.
Os dias seguintes foram um caos: crianças confusas, Miguel desesperado entre trabalho e faculdade, eu sem saber como consolar ninguém.
Uma noite sentei-me ao lado dele na cama:
— Filho… às vezes amar é deixar ir. Talvez ela precise deste tempo.
Ele chorou baixinho no meu ombro como quando era pequeno.
O tempo passou devagarinho; aprendemos a viver só os três adultos e duas crianças naquele quarto apertado. A saudade da Matilde doía todos os dias — especialmente à Leonor, que perguntava pela irmã sempre que via um bebé na rua.
Miguel acabou finalmente o curso ao fim de dois anos penosos; arranjou emprego numa empresa de informática e começámos a sonhar com uma casa maior.
Andreia voltou passado quase um ano — mais calma, mais madura — e trouxe a Matilde para passar fins-de-semana connosco. Nunca voltaram a viver juntos mas aprenderam a ser pais separados sem se odiarem.
Hoje olho para trás e pergunto-me: onde é que errámos? Ou será que fizemos tudo o que podíamos nas circunstâncias em que vivíamos? O amor basta quando falta tudo o resto? E vocês… já sentiram que amar alguém é também aceitar não conseguir protegê-lo de tudo?