Quarto Filho: Quando o Amor Não Chega

— Não pode ser, Marta! Não pode ser! — gritou o Rui, com as mãos a tremerem, enquanto eu segurava o teste de gravidez nas mãos. O cheiro do café queimado enchia a cozinha, mas ninguém parecia importar-se. O silêncio dos nossos filhos no quarto ao lado era quase ensurdecedor, como se até eles pressentissem que algo estava errado.

Eu queria responder-lhe, dizer-lhe que tudo ia correr bem, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. O Rui olhou para mim, olhos vermelhos de cansaço e frustração.

— Como é que vamos fazer isto, Marta? Já mal conseguimos pagar as contas! O Tomás ainda nem faz um ano… — continuou ele, a voz a falhar-lhe.

Agarrei-me à bancada da cozinha para não cair. O chão parecia fugir-me dos pés. Eu própria não sabia como responder. Tinha medo. Medo de não conseguir dar conta do recado, medo de perder o Rui, medo de falhar aos meus filhos.

Naquela noite, deitei-me ao lado dele sem trocar palavra. Senti-o afastado, virado para a parede, a respiração pesada. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos, na festa da aldeia, e de como ele me prometeu que juntos conseguiríamos tudo. Mas agora… agora parecia que estávamos cada um numa ilha diferente.

Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e discussões sussurradas para não acordar as crianças. A minha mãe ligava todos os dias:

— Marta, estás tão calada… Está tudo bem?

Eu respondia sempre o mesmo:

— Está tudo bem, mãe. Só estou cansada.

Mas ela sabia. As mães sabem sempre.

O Rui começou a chegar mais tarde do trabalho. Dizia que eram horas extra, mas eu sabia que era só para evitar estar em casa. Uma noite, depois de adormecer o Tomás e a Leonor, sentei-me no sofá e esperei por ele. Quando entrou, olhou para mim com um misto de culpa e raiva.

— Não posso fingir que isto não está a acontecer — disse ele, baixinho. — Não sei se consigo ser pai outra vez.

— E eu? Achas que eu consigo sozinha? — perguntei-lhe, a voz embargada.

Ele sentou-se ao meu lado e passou as mãos pelo rosto.

— Eu amo-te, Marta. Amo os nossos filhos. Mas sinto-me sufocado… Como é que vamos dar-lhes tudo o que precisam?

Ficámos ali sentados em silêncio. O relógio da sala marcava as horas como uma sentença. Eu queria abraçá-lo, mas sentia-me tão longe dele como nunca.

No dia seguinte, fui trabalhar com olheiras profundas e um nó no estômago. A minha colega Inês percebeu logo que algo não estava bem.

— Estás pálida… aconteceu alguma coisa?

Quis mentir-lhe, mas acabei por desabar:

— Estou grávida outra vez… e o Rui não quer este bebé.

Ela abraçou-me sem dizer nada. Às vezes é só isso que precisamos: alguém que nos abrace quando o mundo parece desabar.

As semanas passaram devagar. As náuseas misturavam-se com a ansiedade. A Leonor começou a perguntar porque é que o pai estava sempre triste. O Tomás chorava mais do que nunca. O João, o mais velho, fechou-se ainda mais no seu mundo de desenhos e silêncios.

Uma noite, depois de todos adormecerem, sentei-me à mesa da cozinha com um caderno e comecei a fazer contas: quanto gastávamos em fraldas, leite, comida… O dinheiro não chegava. Liguei à minha mãe:

— Mãe… preciso de ajuda.

Ela veio logo no dia seguinte, trazendo sopa e um abraço apertado.

— Filha, eu sei que é difícil… mas tu és forte. Sempre foste.

Chorei no colo dela como uma criança. Senti-me pequena e perdida.

O Rui continuava distante. Uma noite ouvi-o ao telefone com o irmão:

— Não sei se aguento isto… às vezes penso em sair de casa.

O coração caiu-me aos pés. Será que ele ia mesmo abandonar-nos?

No dia seguinte confrontei-o:

— Ouvi-te ontem… Queres ir embora?

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.

— Não sei… — disse finalmente. — Sinto-me preso numa vida que não escolhi.

As palavras dele cortaram-me como facas. Eu também não tinha escolhido isto assim… mas era a nossa vida agora.

Os meses foram passando entre consultas no centro de saúde e noites mal dormidas. A barriga crescia e com ela o medo do futuro. O João começou a ter más notas na escola; a professora chamou-me para uma reunião.

— Ele parece triste… diz que tem medo que o pai vá embora — confidenciou-me ela.

Senti uma culpa esmagadora. Estávamos todos a sofrer.

No Natal desse ano, tentei fazer tudo igual aos outros anos: bacalhau na mesa, filhoses feitas pela avó, presentes simples embrulhados com carinho. Mas havia uma sombra sobre nós. O Rui quase não falou durante o jantar; os miúdos perceberam.

Depois do Natal, decidi procurar ajuda psicológica no centro de saúde da vila. Falei com a Dra. Teresa sobre tudo: o medo, a solidão, o cansaço infinito.

— Marta, não és menos mãe por pedires ajuda — disse ela com doçura.

Comecei a ir às sessões todas as semanas. Aos poucos fui aprendendo a respirar fundo antes de gritar com os miúdos ou discutir com o Rui. Comecei também a escrever num diário todas as noites; era como despejar o peso do dia nas páginas gastas do caderno.

Um dia encontrei o Rui sentado na sala às escuras. Sentei-me ao lado dele sem dizer nada.

— Desculpa — murmurou ele finalmente. — Tenho medo de falhar convosco…

Abracei-o com força.

— Eu também tenho medo — confessei-lhe.

Chorámos juntos nessa noite pela primeira vez em meses.

Quando chegou o dia do parto, estava sozinha no hospital de Santarém porque o Rui ficou com os outros três em casa. Senti-me dividida: queria tê-lo ali comigo mas também sabia que ele estava a fazer o melhor que podia por nós.

O bebé nasceu saudável: uma menina, Matilde. Quando cheguei a casa com ela nos braços, vi lágrimas nos olhos do Rui pela primeira vez desde tudo aquilo começar.

— É linda… — disse ele baixinho, pegando nela ao colo.

Os meses seguintes foram duros: noites sem dormir, contas atrasadas, discussões sobre tudo e nada. Mas também houve momentos bons: risos dos miúdos no quintal da avó, tardes de sol na praia fluvial da aldeia, abraços apertados quando tudo parecia perdido.

Hoje olho para os meus quatro filhos e para o Rui — ainda juntos apesar das tempestades — e pergunto-me: será o amor suficiente quando tudo parece desmoronar? Ou será preciso coragem para continuar mesmo quando já não acreditamos em nós próprios?

E vocês? Já sentiram que o amor sozinho não chega? Como encontraram força para continuar?