Quando pedi à minha avó para me passar a casa: Verdades sobre amor, confiança e família

— Marta, tu não sabes o que estás a pedir. — A voz da minha avó tremia, mas os olhos mantinham-se fixos nos meus, como se procurassem uma resposta que eu própria não sabia dar.

O relógio da sala marcava quase meia-noite. O cheiro do chá de lúcia-lima pairava no ar, misturado com o aroma doce do bolo de laranja que ela fazia sempre que pressentia uma tempestade. Eu sentia o coração a bater tão forte que quase abafava o tique-taque insistente. Tinha vinte e oito anos, mas ali, sentada à mesa da cozinha, sentia-me de novo uma criança perdida.

— Sei, avó. Sei muito bem. — A minha voz saiu mais baixa do que queria. — Só… só queria garantir que nada muda se um dia… se um dia tu já cá não estiveres.

Ela pousou a chávena com um gesto lento. As mãos dela, enrugadas e firmes, tinham-me embalado tantas noites em que chorei por pais ausentes. Cresci naquela casa amarela de paredes grossas em Vila Nova de Gaia, onde cada canto tinha uma história nossa. Fui criada por ela desde os cinco anos, quando o meu pai fugiu para França e a minha mãe desapareceu entre promessas de telefonemas nunca feitos.

— Marta, esta casa é tudo o que tenho. — O olhar dela suavizou-se. — E também é tudo o que tu tens. Mas sabes como é a família…

Sabia. Sabia demasiado bem. Desde que comecei a trabalhar no café do bairro, os meus tios e primos só apareciam quando cheiravam a festa ou a dinheiro. Nunca vieram ajudar quando a avó esteve doente, nem quando as contas se acumulavam na gaveta da cozinha. Mas agora, com ela envelhecida e eu a cuidar dela sozinha, todos pareciam lembrar-se de onde ficava a nossa porta.

— Não quero que ninguém te tire isto — insisti. — Não quero acabar na rua quando tu partires.

Ela suspirou fundo. O silêncio entre nós era pesado, como se as paredes escutassem cada palavra.

— E se eu disser que sim? Achas que os teus tios vão aceitar? Achas que não vão dizer que te manipulei?

O medo dela era real. Já tinha ouvido as conversas sussurradas na sala de espera do hospital: “A Marta só está ali por interesse”, “A velha já nem sabe o que faz”. Doía-me mais do que qualquer bofetada.

— Não me importo com o que dizem — menti. Importava-me sim. Importava-me tanto que as noites eram passadas em claro, a pensar se estava a ser ingrata ou apenas a proteger o pouco que tínhamos construído juntas.

Naquela noite não dormi. Fiquei a ouvir os passos arrastados da avó pelo corredor, o ranger das tábuas antigas, o som do vento a bater nas portadas. Lembrei-me das vezes em que ela me aconchegou na cama, das histórias inventadas para me fazer esquecer o vazio dos meus pais.

No dia seguinte, acordei com vozes na sala. Era o meu tio Rui e a minha tia Lurdes. Tinham vindo “ver como estava a mãe”, mas traziam olhos de quem fareja problemas.

— Então, Marta — começou o Rui, sem rodeios — ouvi dizer que andas a querer pôr a casa no teu nome.

A avó olhou para mim, aflita. Senti um nó na garganta.

— Não é nada disso — tentei explicar. — Só quero garantir que ninguém mexe nisto enquanto eu cuido da avó.

A tia Lurdes bufou:

— Pois claro! E nós? Não temos direito? Sempre fomos filhos dela!

— Onde estavam vocês quando ela esteve internada? — explodi. — Quem ficou aqui noites sem dormir? Quem pagou as contas?

O Rui levantou-se de rompante:

— Não te admito! Sempre foste uma ingrata! Se não fosse a mãe, nem sabias o que era pão!

A avó chorava baixinho. Senti-me miserável por ser causa daquela dor.

— Chega! — gritou ela de repente, surpreendendo-nos a todos. — Esta casa é minha! E faço dela o que quiser!

O silêncio caiu como uma pedra. O Rui saiu batendo com a porta; a Lurdes ficou mais um pouco, lançando olhares venenosos antes de desaparecer também.

Nos dias seguintes, o ambiente ficou pesado. A avó andava calada, quase não comia. Eu tentava animá-la com pequenas coisas: flores frescas na jarra, bolos acabados de fazer, conversas sobre novelas antigas. Mas sentia-a distante.

Uma tarde, enquanto limpava o pó à estante da sala, encontrei uma caixa de cartas antigas. Eram cartas dos meus pais à avó: promessas de voltar, desculpas esfarrapadas, palavras vazias. Li-as todas com lágrimas nos olhos. Percebi então o peso que ela carregava: não era só medo de perder a casa; era medo de perder mais uma vez alguém que amava.

Nessa noite sentei-me ao lado dela no sofá.

— Avó… desculpa se te magoei. Só tenho medo do futuro.

Ela apertou-me a mão com força surpreendente para quem parecia tão frágil.

— Eu também tenho medo, Marta. Mas sabes? O amor não se mede em papéis nem em casas. Mede-se nas noites em claro, nas sopas quentes quando estás doente, nos abraços quando tudo parece perdido.

Chorámos juntas até adormecer no sofá.

No mês seguinte fomos ao notário. A avó decidiu passar-me o usufruto da casa em vida, mas manteve-se como proprietária até ao fim dos seus dias. Os tios nunca mais falaram comigo; alguns vizinhos olharam-me de lado durante meses.

A vida seguiu devagarinho. Cuidei da avó até ao último suspiro dela, numa manhã fria de janeiro em que o sol parecia não querer nascer. Fiquei sozinha naquela casa cheia de memórias e silêncios pesados.

Hoje olho para as paredes amarelas e pergunto-me: fiz bem? Fui egoísta ou apenas tentei proteger aquilo que era nosso? Até onde vai a gratidão antes de se transformar em medo de perder tudo?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por amor e segurança?