Quando o Silêncio Grita: A História de Ana e a Fé Perdida

— Ana, tens de aceitar. O João não vai voltar. — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha fria, misturando-se com o cheiro do café queimado e o som abafado da chuva a bater nos vidros. Eu olhava para as mãos, trémulas, tentando encontrar nelas a força que me faltava.

— Não digas isso, mãe. Ele pode estar… — A frase morreu-me nos lábios. Não sabia sequer o que queria dizer. Preso? Perdido? Morto? O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer palavra.

O João saiu de casa numa terça-feira de manhã, com a pressa habitual de quem está atrasado para o trabalho. Deu-me um beijo na testa, murmurou qualquer coisa sobre o jantar, e nunca mais voltou. Não houve carta, mensagem, nem sequer um telefonema. Só o vazio. E eu, de repente, com dois filhos pequenos — a Mariana, de sete anos, e o Tomás, de quatro — e uma casa onde cada canto gritava o nome dele.

Os dias seguintes foram um borrão de perguntas sem resposta. A polícia veio, fez perguntas, levou uma fotografia do João. Os vizinhos cochichavam no elevador, olhavam para mim com pena ou desconfiança. A minha sogra, Dona Lurdes, ligava todos os dias, ora a chorar, ora a acusar-me de alguma coisa que nem ela sabia explicar.

— Se tu não fosses tão fria, ele não tinha fugido! — gritou-me uma vez ao telefone. Eu desliguei sem responder. Não tinha forças para discutir, nem para me defender.

O dinheiro começou a faltar depressa. O João era o único a trabalhar. Eu tinha deixado o emprego no supermercado quando o Tomás nasceu, convencida de que era melhor para as crianças. Agora, as contas acumulavam-se na gaveta da cozinha, e o frigorífico parecia cada vez mais vazio. Tentei pedir ajuda à Segurança Social, mas disseram-me que tinha de esperar. Tudo era esperar: esperar que o João voltasse, esperar que o dinheiro chegasse, esperar que a vida voltasse ao normal.

As noites eram as piores. A Mariana chorava baixinho na cama, perguntando pelo pai. O Tomás fazia birras, recusava-se a comer. Eu sentava-me no sofá, a olhar para a porta, como se ele pudesse entrar a qualquer momento. Às vezes, imaginava ouvir o som das chaves na fechadura. Outras vezes, desejava nunca mais ouvir nada.

Uma noite, depois de deitar as crianças, sentei-me à mesa da cozinha com a minha mãe. Ela olhou para mim com aqueles olhos cansados de quem já viu demasiado sofrimento.

— Ana, tens de reagir. Não podes ficar à espera do João. Tens de pensar nos teus filhos.

— E se ele voltar? — perguntei, a voz embargada.

— E se não voltar? Vais deixar a vida passar à tua frente?

As palavras dela doeram-me mais do que qualquer bofetada. Mas, no fundo, sabia que tinha razão. No dia seguinte, vesti-me cedo e fui bater à porta do café da Dona Rosa, no fim da rua.

— Precisa de ajuda? — perguntei, a voz a tremer.

Ela olhou para mim de cima a baixo, avaliando-me como se fosse um peixe no mercado.

— Não posso pagar muito. — respondeu, secamente.

— Não faz mal. Preciso só de alguma coisa para começar.

Comecei a trabalhar ali no dia seguinte. As mãos doíam-me de tanto esfregar chávenas e limpar mesas, mas pelo menos sentia-me útil. A Dona Rosa era dura, mas justa. Às vezes, deixava-me levar para casa os restos do dia — um pão, um pouco de sopa. As crianças começaram a sorrir outra vez quando lhes levava um pastel de nata ao fim do dia.

Mas o vazio do João continuava a crescer dentro de mim. Cada vez que o telefone tocava, o coração disparava. Cada vez que via um homem alto na rua, prendia a respiração. A polícia ligava de vez em quando, mas nunca havia novidades.

Uma tarde, ao sair do café, encontrei a Dona Lurdes à porta de minha casa. Trazia os olhos vermelhos e uma expressão dura.

— Vim buscar as crianças. — disse, sem rodeios.

— Como assim? — perguntei, sentindo o chão fugir-me dos pés.

— Não tens condições para cuidar deles. O João desapareceu porque não aguentava esta vida. Eu vou levá-los para minha casa.

— Nem penses! — gritei, sentindo uma raiva antiga a subir-me à garganta. — São meus filhos!

Ela avançou para mim, os olhos cheios de lágrimas e ódio.

— Tu não sabes o que é ser mãe! Se soubesses, não tinhas deixado o João fugir!

As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. Comecei a duvidar de mim própria. Será que tinha falhado como mulher? Como mãe? Como filha?

Nessa noite, sentei-me no chão da casa de banho e chorei como nunca tinha chorado antes. Chorei pelo João, pelos meus filhos, por mim. Chorei até não ter mais lágrimas.

No dia seguinte, a Mariana acordou com febre alta. Levei-a ao centro de saúde, mas a médica olhou para mim com desconfiança quando lhe disse que o pai tinha desaparecido.

— Tem de ter cuidado com a menina. O stress pode afetar muito as crianças.

Senti-me julgada, sozinha, perdida. Mas quando olhei para a Mariana, vi nos olhos dela uma esperança teimosa. Ela acreditava que eu era capaz de tudo. E, naquele momento, decidi que não podia desistir.

Comecei a procurar outros trabalhos. Limpei casas, tomei conta de idosos, fiz tudo o que apareceu. A vida era dura, mas as crianças começaram a adaptar-se. O Tomás voltou a rir, a Mariana começou a trazer boas notas da escola.

Um dia, meses depois do desaparecimento do João, recebi uma carta. Não tinha remetente. As mãos tremiam-me enquanto a abria.

“Ana,

Desculpa. Não consegui aguentar. Precisei de fugir. Não sou o homem que pensavas. Cuida dos nossos filhos. Não procures por mim.

João”

Senti uma mistura de raiva, alívio e tristeza. Pelo menos sabia que estava vivo. Mas também sabia que estava sozinha.

A minha mãe abraçou-me quando lhe mostrei a carta.

— Agora já podes seguir em frente, filha.

E foi isso que tentei fazer. Continuei a trabalhar, a lutar, a cuidar dos meus filhos. A Dona Lurdes nunca mais apareceu. Os vizinhos deixaram de cochichar. A vida foi voltando ao normal — ou, pelo menos, a um novo normal.

Às vezes, ainda acordo a meio da noite, à espera de ouvir as chaves do João na porta. Mas depois olho para os meus filhos a dormir e percebo que sou suficiente para eles.

Agora pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao silêncio, à espera de um milagre que nunca chega? E vocês, o que fariam se tivessem de escolher entre esperar ou lutar?