Quando o Sangue se Torna Estranho: A Minha Luta por Ser Mãe em Portugal

— Mariana, tu não tens condições! — gritou a minha mãe, com os olhos vermelhos de raiva e medo. — Não vês que vais arruinar a tua vida e a dela?

O eco daquelas palavras ainda me persegue. Estava sentada na sala fria do hospital de Santa Maria, com o cheiro a desinfetante entranhado na pele, enquanto a minha filha, Leonor, dormia numa incubadora. O parto tinha sido um pesadelo: hemorragias, médicos a correr, o som estridente das máquinas. Quando finalmente ouvi o choro dela, pensei que tudo ia melhorar. Mas não foi assim.

O meu pai entrou na sala, calado. Olhou para mim como quem olha para um estranho. — Mariana, ouve a tua mãe. Não tens emprego, o Pedro foi-se embora… Como é que vais criar uma criança sozinha?

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. O Pedro, o pai da Leonor, desaparecera assim que soube da gravidez. Não quis saber de mim nem da filha. E agora, os meus próprios pais queriam que eu desistisse dela? Como se fosse um objeto que se pode devolver.

— Eu não vou dar a Leonor para adoção! — gritei, com lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. — Ela é minha filha!

A minha mãe virou-me as costas. — Vais arrepender-te, Mariana. Vais ver.

Fiquei sozinha naquele quarto branco, com o som das máquinas e o peso do silêncio. Lembrei-me de quando era pequena e a minha mãe me embalava ao colo, cantando baixinho para eu adormecer. Como é que agora ela podia pedir-me para abandonar a minha filha?

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Os médicos vinham ver-me todos os dias, preocupados com o meu estado emocional. Uma enfermeira chamada Dona Rosa foi a única que me deu algum conforto.

— Mariana, ser mãe nunca é fácil. Mas ninguém pode decidir por ti — disse ela, apertando-me a mão.

A minha família deixou de me visitar. Senti-me órfã, mesmo tendo pais vivos. Só tinha a Leonor e aquela ligação invisível mas inquebrável entre nós.

Quando finalmente nos deram alta, voltei para casa dos meus pais porque não tinha outro sítio para ir. O ambiente era gelado. A minha mãe evitava olhar para mim ou para a Leonor. O meu pai saía cedo e chegava tarde. Eu passava os dias sozinha, a cuidar da minha filha e a tentar não desabar.

Uma noite, ouvi-os a discutir na cozinha:

— Ela vai acabar por perceber que não consegue — dizia o meu pai.
— E se ela fizer alguma asneira? — sussurrou a minha mãe.
— Não podemos obrigá-la…

Senti-me uma intrusa na minha própria casa. Comecei a procurar trabalho, mas ninguém queria contratar uma mãe solteira sem experiência. Os dias eram todos iguais: fraldas, choro, solidão.

Uma tarde, recebi uma carta do tribunal. O Pedro queria contestar a paternidade e recusava-se a ajudar financeiramente. Senti o chão fugir-me dos pés. Liguei à minha mãe em desespero:

— Mãe, preciso de ti…

Ela suspirou do outro lado da linha.
— Mariana, tu meteste-te nisto sozinha…

Desliguei antes que ela dissesse mais alguma coisa. Chorei até adormecer com a Leonor ao colo.

O tempo foi passando e aprendi a sobreviver com pouco. Vendia bolos caseiros no bairro para ganhar algum dinheiro. Algumas vizinhas ajudavam-me com roupas e brinquedos usados para a Leonor. Aos poucos, fui criando uma rede de apoio fora da família.

Um dia, Dona Rosa apareceu à porta com um saco cheio de fraldas e leite em pó.
— Não estás sozinha, Mariana — disse ela com um sorriso terno.

Foi nesse dia que decidi sair de casa dos meus pais. Arrendei um quarto minúsculo numa casa partilhada em Chelas. Não era o ideal, mas era nosso.

A Leonor crescia saudável e sorridente. Cada gargalhada dela era uma vitória contra o mundo inteiro.

Os meus pais não me procuraram durante meses. No Natal, enviei-lhes uma fotografia da Leonor vestida de anjinho. Não responderam.

No bairro novo, conheci outras mães solteiras: a Sandra, que fugira de um marido violento; a Filipa, que criava gémeos sozinha depois de ser despedida do supermercado. Partilhávamos histórias e ajudávamo-nos como podíamos.

Certa noite, enquanto embalava a Leonor para dormir, perguntei-me se algum dia os meus pais iriam aceitar-nos de volta. Senti saudades deles, mas também orgulho em tudo o que tinha conquistado sozinha.

Um dia, ao sair do centro de saúde com a Leonor pela mão, vi a minha mãe do outro lado da rua. Os nossos olhares cruzaram-se por um segundo eterno. Ela hesitou, mas depois virou costas e desapareceu na multidão.

O coração apertou-se-me no peito. Queria correr atrás dela, pedir-lhe que me perdoasse por não ser a filha perfeita que ela imaginara. Mas fiquei ali parada, com a Leonor agarrada à minha saia.

Os anos passaram depressa demais. A Leonor entrou na escola primária e eu consegui finalmente um emprego fixo numa pastelaria do bairro. A vida estabilizou-se aos poucos.

No aniversário dos cinco anos da Leonor, decidi convidar os meus pais para a festa. Escrevi-lhes uma carta longa e sincera:

“Queridos pais,
Sei que vos desiludi e que as nossas vidas seguiram caminhos diferentes desde que decidi ficar com a Leonor. Mas ela é uma criança feliz e saudável porque nunca desisti dela — nem de mim mesma. Gostava muito que viessem ao aniversário dela e vissem como crescemos juntas.”

No dia da festa, preparei tudo com carinho: bolo de chocolate caseiro, balões coloridos e música infantil. As outras mães trouxeram filhos e presentes simples.

Quando já estava quase a desistir da esperança de os ver aparecer, ouvi bater à porta.

Era o meu pai. Trazia um embrulho nas mãos e os olhos marejados de lágrimas.
— Mariana… desculpa — murmurou ele.
Atrás dele vinha a minha mãe, hesitante mas com um sorriso tímido nos lábios.
A Leonor correu para eles sem hesitar:
— Avó! Avô!

Nesse momento percebi que as feridas podem sarar devagarinho se houver amor suficiente para as curar.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mães em Portugal passam pelo mesmo? Quantas são julgadas por quererem apenas amar os seus filhos? Será que algum dia vamos aprender a aceitar as escolhas dos outros sem condenar?